quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Expresso 2018.

Em meio às atribulações das ruas, José corria em direção à estação. O trem estava partindo e ele tentava alcançá-lo. Seus parentes, já embarcados, chamavam: - “Corre José! Largue essas bolsas e apresse o passo! Você vai perder o trem”!
google casseta.com.br
Desesperado, ele não via outra maneira de andar mais rápido. Trazia consigo muitas malas, contrário a tantos que só usavam a roupa do corpo. Mas ele não conseguia se desvencilhar delas e as arrastava pelas calçadas. O que ele transportava era algo pessoal, coisas íntimas que os melhores amigos condenavam e nada faziam para socorrê-lo.
O trem já estava estacionado e as pessoas, em grande contingente, iam se acomodando. Todos que chegavam encontravam lugar e a passagem era gratuita. Chegou a hora e a composição partiu. Ela tinha hora certa para sair, pois tem hora para chegar. Em meio a lamentos, José não pode embarcar.
Sozinho na plataforma, vendo que os últimos vagões sumiam na primeira curva, ele sentou e permaneceu em silêncio. Sentia-se desprezado, ignorado pelas amizades. Remoia as palavras da família para que ele abandonasse suas tralhas e alcançasse o trem. Tardiamente começou a examinar seus pertences e a separar o que era desnecessário para aquela viagem. Não demorou muito e a plataforma estava cheia de peças que não precisavam estar ali. Guardados seus, coisas pessoais em desuso; vestimentas fora de moda que por engano foram postas no baú. Cada uma tinha uma história e merecia ser preservada, mas salvar algo é útil quando isso não se torna um transtorno na vida, e aqueles pertences o fizeram perder a viagem.
Tomado pela emoção, decidiu a muito custo abandonar tudo aquilo que era um estorvo. Movido de impulso, separou o que era inútil enchendo as lixeiras do lugar. De todas as suas posses sobrou uma pequena bolsa de mão e ele, decidido a mudar de vida, voltou para casa.
Mais uma vez o final de ano chega e aquele trem estará de volta. No dia trinta e um de dezembro, a meia noite, ele parte. Não espera por ninguém, pois seu destino é inadiável. Por ser imaginário, ele comporta a todos que tiverem disposição, determinação; que forem solidários e preparados para uma aventura baseada em altos e baixos, expectativas e conquistas que serão concedidas a quem estiver na viagem. Estende-se pelas doze estações que o separa da partida e a chegada. Por ser um passeio, prático é nada levar além de malas para serem preenchidas. Enquanto a hora não chega, deve-se avaliar aquilo que se pretenda usar nessa turnê. Há tempo para que se abra mão do que é supérfluo, ver se sua bagagem não está repleta de coisas fúteis que impedem a sua integração ao grupo. Ignorância, omissão, imprudência, mesquinharia, são cargas emocionais que, fisicamente, não ocupam espaço, mas podem retardar qualquer avanço na confraternização universal. Portanto, para embarcar nessa viagem, basta desarmar o espírito, envolver-se pelo desejo de mudança e buscar pelo trem.
Na entrada do novo ano, o Expresso 2015 atracará e acomodará a todos aqueles que quiserem viver uma grande e promissora aventura. Para tal, basta que esteja preparado e na estação!

Boa viagem!

Publicado no ano de 2010, no jornal -A Notícia - de Salesópolis, e reeditado em outras ocasiões.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Forças abstratas.

      Sonhar é divagar, é conceber o imaterial e torná-lo palpável.
Muitas são as formas de sonhos. Além dos humanos, os animais vertebrados também têm essa capacidade. Embora não podemos saber o que eles vivenciam durante os momentos em que as forças psíquicas se manifestam, vemos os movimentos que os membros executam enquanto dormem.
fotoimagens.net
Se o futuro é um emaranhado de estradas invisíveis, as visões e esperanças ambicionadas trazem luz ao obscuro. No fundo, todo sonhador deseja que seu devaneio lhe traga vantagem.
Sonho primário é aquele que surge ainda na infância, mas é deformado por nascer influenciado por outras opiniões. Os anciãos pendem entre as aspirações futuras e os momentos retrógrados passeando na recordação dos grandes momentos vividos. Há o sonho adolescente que é ambicioso, inovador, futurístico e que quase sempre se choca com as aspirações adultas. Alguns os têm de maneira ampla, pungente; outros os concebem de forma humilde. Nestes, os sonhos aparecem como falsas verdades, na tentativa de se equipararem em vantagens aos demais. Há aqueles que o visionam como uma previsão; outros, como um mero acaso. Tem-se o sonho projeto, algo que não é sonhado, mas estudado. Os intelectuais assim procedem explorando os acontecimentos inovadores, especulando como eles seriam nos dias vindouros.
Quando se caminha pelas ruas, por entre as grandes construções – paisagistas, arquitetônicas, artísticas -, alguém já perdeu o sono as idealizando. O ambiente onde se mora, a decoração, os utensílios é a materialização do que se desejou e que foi possível conquistar. Nesse contexto, os grandes sonhadores ganharam asas, foram ao espaço. Eles estão em todos os lugares se devotando no firme propósito de colorir o enfadonho tempo que se estende do despertar ao por do sol, nesse materialismo exacerbado em que a moda e o conforto se fazem prioritário roubando a alegria de se renovar. As grandes tragédias e conquistas consumiram dias de planejamentos.
Por ser algo imaterial, toda ilusão pode levar a realização; do contrário, vira frustração e pesadelo. É uma energia que paira no ar até ser concebida e transformada. Os seres humanos, dentro de suas capacidades o fazem; mesmo aqueles que aparentemente nada sonham, trazem no íntimo o desejo ardente de mudança.
Tantas possibilidades acercam o ser humano e cabe a ele compreender e realizar esse projeto que é viver no universo. A vida nada mais é do que a responsabilidade de alternar a realidade; uma grande obra que se revela dia-a-dia e que o homem é a ferramenta de transformação.
 

c/ Ciro do Valle/2006.



sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Paraitinga.

Paraitinga, na língua tupi-guarani que predominava na região paulista significa: Rio de águas claras  Para-(rio); -i-(águas); tinga-(claras).
 A história de Salesópolis está intimamente ligada ao Rio Paraitinga. Sua demarcação cartográfica original (divisor de água) ia de sua foz, na confluência com o Rio Tietê, até a sua nascente. Hoje, após os ajustes políticos, ele nasce no município de Paraibuna. Se o Rio Tietê é famoso em todo o estado, o Paraitinga é o mais importante para o município. Só nos últimos trinta e cinco anos é que a água que abastece a cidade passou a ser captada do Tietê.
A origem do primeiro núcleo habitacional se deu no século XIX. Era ao lado de uma represa natural constantemente alagada, compreendendo, exatamente, toda a extensão do atual lago artificial.
A primeira atividade econômica era a pesca, mas a olaria, nas suas bordas argilosas, teria sido a principal fonte de renda de Antonio Martins de Macedo (Aranha), reconhecido como o primeiro hospedeiro onde se formou São José do Paraitinga e, posteriormente, Salesópolis.
Em suas margens despontaram a agricultura de subsistência. Arroz, feijão, cana de açúcar, fumo. No pós Primeira Guerra conheceu a batata inglesa, entremeada com a agropecuária. A permanência de proletários em suas margens as manteve com poucas alterações.
Nos anos quarenta do século passado, recebeu o plantio do Sisal o que resistiu por sessenta anos gerando renda e progresso.
O assentamento da Colônia Japonesa, hoje, nos arredores do Distrito, trouxe diversificação de produtos que dependiam diretamente dele.  Há ainda destaque para os Ardachinikoffs, descendentes de russos que ainda vivem de plantas irrigáveis.
Nos anos cinqüenta foi a vez do aproveitamento da esteira para banana.
A fase econômica da taboa (cerca de vinte anos) ocorreu sem a danificação do aspecto físico da região, mas ele passou a ser drenado para a agricultura. O solo era argiloso contendo uma pequena camada de areia.
Ainda nos anos sessenta, o aperfeiçoamento do eucalipto para a celulose levou a exploração dessa madeira para as suas cabeceiras, o que predomina até hoje. Já na década de setenta, Salesópolis passou a fazer parte da Grande São Paulo e seu território integrou a área de proteção de mananciais.
Em 2001, o município virou Estância Turística e, em 2005, a Represa do Paraitinga tornou-se realidade.  Sua função, agora, é abastecer a Metrópole; com o advento do reservatório, vai oferecer, também, lazer aos paulistanos e visitantes. Isso impediu o avanço de atividades industriais poluentes, mas deteve o progresso da agropecuária, da taboa, do carvão e concentrou-se na exploração da monocultura do eucalipto que, por si, afeta diretamente o volume aquífero das nascentes. 

Esse é o desafio: acompanharmos essa constante metamorfose; adaptarmos às suas mudanças, nos prepararmos para o futuro e resguardar aquilo que já foi e que jamais será o mesmo. 

sábado, 25 de outubro de 2014

Ereção da Capela Curada de São Jozé do Parahytinga.

No dia de hoje, conforme documento transcrito há 183 anos, a Comunidade de São Jozé do Parahytinga ganhava sua primeira demarcação geográfica.

PROVISAO DE ERECÇAO DA CAPELA CURADA DE SAO JOSE DO PARAHYINGA
                                                   (Livro do Tombo)

                                     Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de São Paulo, do Concílio de Sua Majestade Ilustríssima, Constitucional, etc.
Foto Faria
                                   Aos que esta Nossa Provisani virem, Saúde e Benção em o Senhor,
    Fazemos saber que attendendo Nós ao que por sua provisam representaram os moradores do Bairro do Parahytinga, termo da Villa de Mogy das Cruzes, e ao officio de 24 de Janeiro do corrente anno; que nos foi enviado pelo Conselheiro Geral desta Província. Havemos por bem declarar Capela Curada a de São Jozé da Parahytinga, do ditto termo de Mogy das Cruzes, e será a sua *díviza com a ditta. Villa a Ponte do Parahytinga, pelo lado esquerdo the ganhar o Pico do Serrote, **Seguindo dahi pelo mesmo; e pelo lado direito da ditta Ponte the chegar o Rio Tietê, seguindo por elle assim the onde faz Barra o Rio Claro.
                                   E para a todo tempo constar será esta registrada nos Livros do Tombo tanto da ditta Villa como da mencionada Capella, Curada.
                                     Dada em São Paulo, sob Nosso Signal e Sello das Nossas Armas, aos 25 de Outubro de 1.831.
                                E eu, o Pe. Fernando Lopes de Camargo, Escrivam Ajudante da Camara de Excelência Reverendíssima, que escrevi.
                                     Lugar do Sello                                                        + Manuel, Bisp
                                    
                                     Nada mais continha, Mogy das Cruzes, 13 de Setembro de 1.834.
                                    O Vigário Pe. Joaquim Franco de Camargo

Transcrito fielmente do livro Notas de História Ecelesiástica ‑ 11 Mogy das Cruzes e seus fundadores ‑ 111 Baruery‑Parnahyba ‑ IV Cutia ‑ 1937 ‑ Empresa Graphica da "Revista dos Tribunais" ‑ Rua Xavier de Toledo, 72 ‑ São Paulo ‑ de autoria do saudoso Dom Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo Metropolitano de São Paulo.

Mogi das Cruzes, 18 de Março de 1.968.
Pe. João de Oliveira Rosa Filho, Chanceler da Diocese de Mogi das Cruzes.
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Os pontos evidenciados são resultados de pesquisa pessoal. O primeiro cita: *díviza com a ditta. Villa a (até) Ponte do Parahytinga (nas proximidades do atual paredão da represa do mesmo rio), pelo lado esquerdo the ganhar o Pico do Serrote (poderia ser a Pedra ou Pico do Itaguassú-), **Seguindo dahi pelo mesmo; e pelo lado direito da ditta Ponte the chegar o Rio Tietê, seguindo por elle assim the onde faz Barra o (foz do) Rio Claro.
Vista da Serra dos Monos - seguindo pela estrada da Barra - é possível notar toda a extensão do Vale do Paraitinga até a conhecida Pedra ou Pico do Itaguassú (pedra muito grande). De outro ponto elevado, desta vez pela estrada do Barro Amarelo (Pico da Torre), é possível ver grande extensão do Rio Tietê até a foz do Rio Claro. Somando os dois pontos de observação e considerando o critério divisor de águas, dava para se ver uns 80% das terras que estaria sob jurisdição eclesial da nova comunidade. 


Com documentos de André Ricardo da Silva e Foto Faria.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Fábula do Porco-espinho.

Durante a era glacial, muitos animais morriam por causa do frio.
Os porcos-espinhos, percebendo a situação, resolveram se juntar em grupos, assim se agasalhavam e se protegiam mutuamente, mas os espinhos de cada um feriam os companheiros mais próximos, justamente os que ofereciam mais calor. Por isso decidiram se afastar uns dos outros e começaram de novo a morrer congelados.
Então precisaram fazer uma escolha: ou desapareciam da Terra ou aceitavam os espinhos dos companheiros.
Com sabedoria, decidiram voltar a ficar juntos.
Aprenderam assim a conviver com as pequenas feridas que a relação com uma pessoa muito próxima podia causar, já que o mais importante era o calor do outro.
E assim sobreviveram.
Moral da História
O melhor relacionamento não é aquele que une pessoas perfeitas, mas aquele onde cada um aprende a conviver com os defeitos do outro, e admirar suas qualidades.


Publicado no Messenger. Imagem Google.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Avenida Prof. Adhemar Bolina.

No final dos anos 60, no século passado, Salesópolis - ou a Vila, como era chamada pelos pioneiros - se viu invadida por grande alvoroço. 
A implantação da primeira linha de oleoduto - entre São Sebastião e Paulínia - trouxe muita agitação para o município. A empresa Techint – Companhia Técnica Internacional- instalou uma de sua base de operações nos arredores e a pacata cidade se viu tomada pelo que havia de mais avançado na engenharia civil. Junto com os equipamentos veio levas de pessoas com sotaques e hábitos inovadores. O resultado foi o avanço populacional oriundo da imigração típica da obra, do êxodo rural provocado pela desapropriação do terreno alagado pela Barragem de Ponte Nova e daqueles que viam nas ofertas de emprego uma nova perspectiva para o futuro.
Em meio a essas mudanças, o tráfico na rua XV de Novembro transbordava com presença de grandes carretas e acentuou a necessidade de se criar uma alternativa para desafogar o trânsito local.
A instalação da segunda linha de tubos, pela Techint, já coincidia com a euforia do uso do eucalipto na celulose e a presença do Oleoduto abriu e melhorou o acesso às montanhas da Serra do Mar e ao Vale do Paraíba.
Segundo o pioneiro Marcílio Santos de Morais, o Moacir Catarino, “A empresa Papel Simão (atual Fibria) investia na região da Bela Vista, em Santa Branca, substituindo as áreas de canaviais por eucaliptos. Eram dois “paus-de-arara” transportando funcionários diariamente, ao mesmo tempo em que o plantio feito, em larga escala, pela Companhia Suzano na cabeceira do Paraitinga começava a produzir. Era comum ver caminhões quebrados no centro ou nas partes elevadas da rua central. Em dias de festas ou na primeira quinta feira do mês, a circulação ficava tumultuada”. Conclui Moacir (Foto).
O primeiro passo foi a drenagem das margens do Paraitinga entre a Rua Abílio dos Passos e a atual Sebastião Nepomuceno.As primeiras viagens de eucalipto, da Gleba 09, foram realizadas pelos senhores José Antônio Pinto (Zé Chaves), João Barbosa (Sabino), o próprio Catarino, entre outros, enquanto a avenida continuava a ser construída.
Em 1977 era possível transpô-la com carros de pequeno e médio porte.
O sucesso do aterro marginal e a triplicação do transporte trouxe o asfalto, feito notável na época. Crente da construção da segunda mão viária, na outra borda do rio, não foi considerado o feitio de acostamento na primeira.  
Batizada de Professor Adhemar Bolina, com a conclusão do asfalto Salesópolis-Tamoios, a avenida nova recebia também os veranistas que visitavam o litoral norte.
A partir de 1985, a forma de carregamento de madeira foi alterada. Os caminhões de 7, 12, 14 toneladas cederam espaço para as carretas e veículos conjugados. Era o resultado da primeira experiência com balança na atual Alfredo Rolim de Moura, que inviabilizava o transporte de eucalipto, para o consumo final, com caminhões de pequeno porte.
No final da década de oitenta, coube ao Sr. Francisco Wuo, vice-prefeito eleito, arborizar toda a extensão concluída.
Mesmo sendo o volume de cargas transportadas cada vez maior, em 1994, foi eliminada a função de mão dupla em grande parte da rua XV de Novembro sobrecarregando ainda mais o corredor marginal.
Na última década, a alameda ganhou o complemento final da segunda via, mas a parte que destinava ao entroncamento com a Rodovia Alfredo Rolim de Moura, no sentido litoral, continua sem perspectiva de construção e recebe caminhões com cargas que variam de 5 a 70 toneladas. O resultado são os rombos que a avenida construída sobre entulhos vem apresentando; a restauração da rede de esgoto, em sua extensão, mostrou isso.   
Outros fatos vieram a culminar com o desassossego da população. Um deles foi a decretação de área de lazer no trecho final da segunda via - entre a Rua Sebastião Nepomuceno e a Avenida Camargo Primo -, além do remanejo da linha de ônibus intermunicipal que transitava pelo centro e das cargas pesadas para a “Adhemar Bolina”. Como existe comércio na extensão desse logradouro, qualquer veículo que estacione interrompe o trânsito e, somem-se a isso os ônibus escolares, além dos utilitários que seguem em mão dupla num trecho sem acostamento e com má sinalização.
Com a realização do calçamento, nota-se que um acostamento funcional está descartado. Outro desconforto enfrentado pelos munícipes é a falta de acomodação digna. Além de caminharem por longas distâncias, necessitam de paciência para aguardarem por uma condução de horários incertos, amontoados em pontos em toda a extensão da Avenida e, enquanto do outro lado, por razões políticas ou financeiras, agora batizada de Avenida Pedro Rodrigues de Camargo Neto, na sua fase final é utilizada por poucos usuários em seu lazer.
Assim, a Avenida Professor Adhemar Bolina, cumpre o seu papel e, como o seu patrono, é polêmica. Para Salesópolis é a saída, mas para os salesopolenses tem sido o seu algoz.

Fotos: CV e Foto Faria

Dia do professor.

Parabéns aos nossos professores. Pessoas que abraçaram a dura arte de ensinar e a fizeram com esmero. Aqueles que nos acolheram numa época em que perdíamos em ideias, e fizeram de nossa educação o seu ideal.


domingo, 12 de outubro de 2014

Resíduos.

Uma das diferenças entre os homens e os animais está nos resíduos. O lixo animal é absorvido pela Natureza em poucos dias; o lixo deixado pelos humanos pode levar décadas.

Um exemplo: a eleição foi na semana passada e ainda há muito lixo espalhado pelas ruas nas regiões afastada do centro. Se fosse restos dos animais já estariam reciclados.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Aula prática.


Era sábado cedo, e amigos do Patrick se reuniam. Alunos de primeira série se juntaram para soltarem pipas. Já haviam feito isso antes, mas, em separado.
O mês de julho no hemisfério sul tem os dias curtos, e naquela manhã eles se achavam num local descampado. Preferiam brincar no pátio da escola, ou na avenida, mas os pais alegavam perigo no fio elétrico.
negociodefamília.com.br 
Chegou o Clayton de gorro amarelo-creme com uma bola de lã na cabeça - parecia um sorvete-; o pai do Lê é barrigudo e careca - ele não usava nada na cabeça, mas tinha um cachecol. Quim, filho do camponês também não veio, nem o Nino, filho do marceneiro; vai que eles não têm conta na papelaria. Era só chegar pegar e marcar...
Tinha pipa de origem chinesa, japonesa, com grandes rabiolas ou sem nada.
Havia serração e as crianças, bocejando, esperavam. Por último, o sol foi se levantando, vermelho, inchado - não são só os olhos das crianças que ficam assim quando saem da cama-, mas cadê ele? O vento não veio. Ansiosos, alguns ensaiavam corridas com suas estrelas. Todos estão prontos, sonolentos, mas a energia invisível que faz as pipas e as árvores ricochetearem faltou ao encontro. Os brinquedos estavam estáticos. No ar elas são poderosa, imponentes; mas quando se veem no chão, são inofensivas. Diferenciam-se pelos tamanhos, mas se igualam na incapacidade de expor a sua beleza, o seu poder. Sem a ação invisível do vento elas são peças caras em desuso.
O sol foi recobrando sua aparência e se tornando quente. Enquanto esperam, alguém convidou a todos para um chocolate na padaria. Contrariados com seus papagaios nas mãos, alguns se revoltavam, choravam, mas se entreteceram pelos doces que havia na vitrine da panificadora. Desiludidos pelo fracasso das pipas, viam-se reunidos num local diferente da sala de aula, sem o mando de professores e com total liberdade.
Viram que pessoas compravam pães, café, açúcar, adoçantes. Ainda é cedo, mas as crianças de cor negra não usam agasalhos; será que elas não sentem frio? Nas proximidades do descampado, há pessoas ao relento, adormecidas... Porque será que elas não foram pra casa?
Outro fato que os amigos de Patrick notaram é que as pessoas, as casas e os carros, na medida em que vai se afastando do centro, vão se tornando mais simples, a rua é esburacada. Aquelas roupas que estão à venda nos brechós e feiras de usados invadem a periferia. Isso explica os modelos que a Conceição, colega de classe, usa.  Dançam o funk, o sertanejo; as meninas usam roupas justas; há aqueles que têm tatuagens, brincos e piercings em partes do corpo. Será que não dói?...
Abismados com o choque dos costumes se encurralam próximos dos pais enquanto as crianças da redondeza, vendo as pipas, vão chegando, rodeando e se apoderando delas. Falam do cerol que eles usam, o mesmo que a professora vive dizendo que é perigoso. Vendo o interesse daqueles pequenos pelos brinquedos, um dos pais sugeriu que fossem doados àqueles garotos; eles os receberam e saíram invadindo a rua e o trânsito.
O ambiente se torna tenso. Alegando que o sol estava forte, que era a hora de ir embora, os colegas vão saindo.
Tiveram uma aula prática de vida e, embora não entendam o ocorrido ou o que o futuro lhes reserva, os momentos contrastantes que conheceram é só um exemplo do paradoxo social com o qual eles terão de conviver.    

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Solo fértil.

A mente humana é um terreno fértil. Tudo o que se planta vinga! E tudo o que se alimenta, cresce! Pode ser amor, ódio, violência ou devassidão. Esse solo fecundo tudo aceita!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A Sinfônica.

O silêncio se impõe de forma inquietante. Instintivamente ela se eleva e traça no ar movimentos compassado e de forma ininterrupta. Ela, a batuta, com sua aparência franzina é enérgica! No seu vai e vem, convoca a cada instrumento ordenando sua entrada ou saída de cena. Assim, todos os metais, por ordem são chamados e, mesmo com seu tom estridente, não se impõem sobre o coro virginal oriundo das cordas. Igualmente, o baixo tuba e os tambores se respeitam. Juntos, criam uns sons harmoniosos, envolventes. Não importa a diferencialibidade dos mais estranhos e exóticos instrumentos, na orquestra tudo se encaixa. Se executarem grupos de pianos, corais de centenas a milhares de vozes, tudo sairá uníssono. Em seu momento, a sutil flauta faz frente às sopranos, aos tenores e, até mesmo ao poderoso gongo japonês. Em tudo há cadência, pois, embora diferenciados entre si, os graves, contraltos ou aveludados, seguem pela mesma trilha da partitura que, com suas poucas linhas, permite breves escapadas, mas nunca o seu total desprendimento. Agindo dessa forma, têm suas sonoridades respeitadas, portanto; se grandes ou pequenos, seguem pela mesma estrada. Ordeiramente vagam pela breve, semibreve até as semifusas em compassos certeiros sob a regência da implacável e dinâmica batuta. As “fusas” exigem dos instrumentistas  muita agilidade; são como crianças saudáveis  que recreiam pelas ruas. As “colcheias”  se assemelham aos adultos que ponteiam a harmonia;  as “breves”, lembram o lado metódico da população. Todo o conjunto forma um evento singular que embala os sonhadores. As peças se alteram: clássicas, dramáticas, as sonatas. A perfeição do sincronismo musical se dá em virtude da rígida marcação e da interpretação das notas e escalas pelos músicos. Por trás de cada peça, há um ser humano dando vida aos símbolos musicais. É o cérebro o conversor dos sinais em sons e, através deles, os gráficos determinam os movimentos dos dedos nas cordas ou nos teclados; das mãos hábeis nas baquetas ou na batuta que os rege com todo o vigor.
Agora, convenhamos. Se por trás de cada instrumento há pessoas e, se parte delas a execução afinada da sinfonia; então, porque na vida real o mesmo não sucede? Se os músicos estudam durante a infância para que, quando adulto, possam ocupar um lugar de destaque na orquestra; mas as pessoas treinam a vida inteira para se harmonizarem! Têm sua Carta Magna e elegem seus regentes, aos quais por si se submetem a todos os tipos de exploração. São talentos dignos de grandes peças, mas se fazem inúteis diante incontáveis momentos inglórios originando um imenso submundo explorado indignamente. Formam uma orquestra apática num concerto desafinado. Mas, afinal, na sinfônica humana, quem desafina?...São os “músicos” ou os “regentes”?

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Os dois lados da moeda.

O fantástico mundo da ilusão está à disposição de todos. A qualquer hora vemos, por entre as nuvens, grupos de pessoas que voam alegremente; da mesma forma, na terra, bandos de gatos fazem cabos de guerra com pitibuls. Veem-se borboletas conversando com as flores, uma manada de leões aplaudindo o desfilar de saudáveis gazelas. O incrível mundo onde os animais se confraternizam insiste que, nele, o beijo é técnico e as insinuações sexuais, também.
A televisão, com pouco mais de oitenta anos de existência, ocupa um espaço impensado pelos  homens que a inventaram. Gera ilusões; é educativa e, ao mesmo tempo, dispersiva. Sendo fruto do capitalismo, qualquer minuto pode valer milhões. É penetrante; seus anúncios, mesmos os mais absurdos, vão aos poucos se enraizando nas mentes estressadas transformando o indigesto em elegante, o cafona em moda. Por estar diretamente ligada ao consumidor traz sempre novidades. Tornou-se informante de verdades e inverdades; é capaz de mergulhar nos abismos oceânicos trazendo à tona animais que jamais viram a luz solar. É capaz de mostrar um óvulo se desprendendo do ovário; as veias internas, os canais do sistema digestivo. Por estar ligada à base exploratória da opinião pública, vive criando furos jornalísticos e ocultando vexames políticos. Nos horários vespertinos exploram a miséria em busca de audiência; cultua o ridículo, o tacanho em busca de debates. Nos programas “chamados populares” exibem “gatos e gatas sarados”, de “cabeças vazias” estimulando o lado sensual que a humildade tem em abundância: a imaginação fértil para assimilarem os modelos talhados pelos clérigos, os noveleiros e poetas, transformando instintos reprodutivos em amor com os mais diversos adjetivos. É um veículo contraditório; por um lado traz cultura, por outro, o estímulo à violência como entretenimento. Mistifica assuntos banais, mas é a desvendadora de mistério e tabus. Seus refletores aceleram processos, faz recuar o político oportunista, porém, é retaliatória, direcionando os melhores programas aos canais fechados, indiretamente, alimentando a divisão social. Sua imponência a capacita a fazer o bem a toda à humanidade, contudo, seus diretores preferem louvar a desgraça do agreste a cobrar da elite providências para salvar aquele povo. No fim de noite, por exemplo, mostra em cadeia nacional o teatro encenado pelos políticos, com seus coadjuvantes, e o humor bestializado dos tiriricas da vida. É a fonte preparada para publicar os feitos e as mazelas do mundo, no entanto, nas eleições, investe nas pesquisas; indiretamente, induzindo os eleitores a apoiarem seus interesses. É um veículo que cumpre a sua função e, pelo avanço conquistado, mostra que traduz a exata aspiração de seus povos. Faz coisas glamorosas, mas peca pelo excesso de ilusão.
Sendo obra humana, justificam-se tais imperfeições. Pudera. Afinal, vivemos num mundo onde cães, gatos, leões e antílopes são inimigos naturais.

(A tv é) “Um monstro na frente do qual as pessoas irão desperdiçar sua vida”.

Philo Farnsworth (1906-1971), reconhecido como o autor da televisão.  Revista Superinteressante – 11/1999.

domingo, 28 de setembro de 2014

Utopia.

Os heróis estão a postos. Do nada surgiram e ocupam todos os cantos do País. Muitos retornam após quatro anos de extrema dedicação à causa humana. Os esforços não os abatem e, mesmo sendo meros mortais, enfrentam as intempéries climáticas sem perder a expressão de bondade estampada nos rostos seguidos de gestos delicados e simpáticos. São modernos guerreiros que não medem esforços no combate às dificuldades. A cada biênio é assim; por um determinado tempo as coisas se ajeitam. Ondas de benignidade assaltam as cidades fazendo emergir obras, até antes emperradas, inaugurações faraônicas; o inusitado acontece. E todos clamam numa só voz: “É o fim do desemprego! A segurança plena é um direito de todos! A educação será de primeiro mundo! Nota dez para a saúde; adeus à marginalidade e aos preconceitos! Virá aumento gradativo de salário, a ascensão dos aposentados, o fim da mortalidade infantil, a elevação geral do nível de vida e os transportes atingirão níveis nunca vistos. Modernos ônibus circularão onde só os tatus, munidos de chuteiras, atravessavam!”
Soam trombetas e, com elas, disparam as carreatas. Legião de adolescentes desfila pelas ruas. Distribuem “os santinhos” e muita simpatia. Tudo pelo social! Cada esquina apresenta sua atração: festas grandiosas são promovidas nas comunidades, shows variados todas as noites, peonadas e sempre, por mera coincidência, tem alguém a lembrá-lo de que ele é a pessoa indicada para os maiores cargos. Com todo esse aparato, o “povão”, esquecendo a barriga “no fundo” e as incertezas do amanhã, sente-se feliz. Nesse clima de comemoração, ignorando preconceitos, os semblantes se amenizam e os homens se abraçam (e como se abraçam!).
Apesar de todas as fiscalizações, em cada quarteirão, os soldados do Apocalipse mantêm-se nas placas, e com seus “e-mails”, facebooks espalhados pelas esquinas e residências. Suas armas letais são: a arte de tampar o sol com a peneira e a habilidade de ocultar o pó por sob o tapete vermelho que os pés descalços e eufóricos, transpõem. “Época das vacas gordas!”, dizem os iludidos. O que não se comenta, é que segundo o sonho profético, do mesmo Nilo de onde saíram vacas gordas, sucederam-se as vacas magras e famintas...




sábado, 27 de setembro de 2014

Adeus ao Pracinha.


Neste dia 27 de setembro seguiu viagem o último Pracinha que viva entre nós. O herói Orlando Rodrigues de Camargo encerrou sua trajetória vitoriosa. Deixa a irmã, esposa, filhos, netos e inúmeros amigos. A partir de hoje a nossa saudade aumenta e o Esquadrão Vitorioso está novamente reunido.
O.R.C
Saudações aos Combatentes in memoriam:
Abílio dos Passos
Benedito Claudino dos Santos
Benedito da Fonseca
Daulindo Pinto
Francisco da Silva
Francisco Miranda Melo
Indionor dos Santos
João Duarte
José Cursino dos Santos
José Francisco de Melo
Jurandir Nepomuceno da Silva
Laurentino Marcelino de Morais
Moacir Albino Wuo
Orlando Rodrigues de Camargo
Paulo Fatigatti de Morais
Pedro de Souza
Pedro Fróis de Oliveira
Pedro Pinto de Miranda
Raul Gomes
Samuel Félix.           

Em respeito a todos, relembro aqui o soneto dedicado aos vinte Pracinhas salesopolenses que integraram a Força Expedicionária Brasileira.

                             Pracinha do Brasil
Lucas Candelária

Quando era a Velha Europa massacrada
Pela agressão e força do nazismo.
E ao rugir dos canhões e à honra ultrajada,
A guerra impunha a Lei do feudalismo;

Pelo sangue humano a terra enlameada
E Hitler arrastando ao fundo abismo,
A pobre humanidade agoniada,
Para um mundo de horror e servilismo;

Então, aliaram-se as nações. Com glória
Beligerante, e justa, e varonil,
Deram cobro à barbárie infamatória.

E voltou, abraçado ao seu fuzil.
- Herói, cheio dos louros da vitória -,
O valente Pracinha do Brasil!

Jornal A Notícia. Foto Faria.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

As placas nas rodovias são confiáveis?

Se a sua resposta é sim, eu proponho que você preste mais atenção nelas. Sua função é informar, mas, às vezes, elas trazem erros visíveis.
Vejam exemplos encontrados na Rodovia Alfredo Rolim de Moura, estrada que foi recentemente reformada, ampliada e, em alguns casos, duplicada e amplamente sinalizada.
Registrei alguns erros que não chegam a causar grandes transtornos, mas estão incorretos. Seguindo no sentido Mogi das Cruzes-Rodovia dos Tamoios, o primeiro deles está próximo à rotatória, na reta do Irohi, que da acesso ao Bairro  do Sogo, no município de Biritiba Mirim.
Com a intenção de homenagear postumamente um respeitado cardiologista, amigo da cidade, o Poder Público nomeou aquela estrada como: Estrada Dr. Artur Alberto Nardy e não Nordy como se está escrito.
No Bairro da Grama, em Salesópolis, próximo ao Km 93, a parada de ônibus traz a informação: Parada do Teófilo; mas o ponto em referência é conhecido por "Fazenda Jaraguá", Já no local que era o acesso à propriedade do homenageado, no Km 91, não há nenhuma inscrição.
Outra placa com mensagem equivocada está na saída de Salesópolis, no mesmo sentido. No bairro Nhá Luz, após a igreja e a saída para o Morro Grande, vê-se os seguintes dizeres: Paraibuna 83 km, Caraguatatuba 65 km.  Fazendo as contas temos: até a Rodovia dos Tamoios somam-se 43 kms; do entroncamento até Paraibuna são mais 22 kms; portanto, 65 kms. A ordem das cidades está invertida.
Mais adiante, no bairro do Alegre - já no município de Paraibuna-, na única travessia da Rodovia Rolim de Moura sobre o Rio Paraitinga; na placa está escrito: Rio Piraitinga e não Paraitinga.  

Como se vê, são pequenos erros que passaram despercebidos e continuam lá; então, se você confia nas placas, atenção: elas nem sempre estão certas.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O gato e o sino.

The Cat and the Bell
(adapted from “Fables an Fairy Tales” by  M West).                         *Trad: Ciro do Valle.

Havia muitos ratos numa casa. O dono da casa decidiu arrumar um gato, e ele caçou alguns ratos. Então um rato ancião disse:
“Todos os ratos venham até a minha toca a noite e nós pensaremos no que fazer com este gato.”
Todos os ratos vieram.
Alguns falaram, mas eles não sabiam o que fazer.
Por último, um rato jovem se levantou e disse:
“Nós temos que por um sino no gato! Então, quando ele se aproximar, nós ouviremos o sino, fugiremos e nos esconderemos. Assim o gato não pegará mais nenhum rato!”
O velho rato perguntou:
“Quem colocará o sino no gato?”
Nenhum rato respondeu.
O velho rato esperou, mas nenhum rato rebateu.
Por fim ele disse:
“Não é difícil dizer coisas. Difícil é fazê-las!”

 Fim.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Sabedoria.

Para quem desconhece os fatos, Deus dá a fé; para quem desconhece a fé, Ele dá os fatos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Tietê.

In natura.
Há quem diga que sou uma dádiva, um encanto, um mistério. De fato, sou fruto da relação entre o sol e o mar; gerei-me em vapor, elevei-me ao ar, a brisa me transportou e lá, nas encostas da serra, no ventre da terra, o sopro da vida se apossou de mim. Sou menino franzino a engatinhar por entre as folhas secas, em alegre folguedo, deslizo pela grota. Na inocência da infância sou contagiado pelo clima silvestre que rodeia o meu caminhar. No vale encantado, onde a Natureza impera, vou seguindo a trilha. Um lugar paradisíaco em que as abelhas disputam as flores com os colibris apressados enquanto o bem-te-vi observa ao longe. O berço protegido pelos biris, chapéus-de-couro e os cerrados não ocultam o ipê que guarda suas pétalas para expô-las na primavera. Tatus-mirins saem de suas tocas e se alimentam no sauveiro. Passo despercebido pelas ramadas onde o guaxinim vigia a jararaca que se arrasta sorrateira no encalço de pequenas rãs e ninhos de camundongos. Há jogos de sedução e até lutas violentas em toda a fauna. São regras do jogo da vida, das quais, nenhum ser vivo é excluído. Assim, a borboleta cobre de inveja às mariposas que preferem fazer suas revoadas à noite. Da mesma forma, os morcegos repousam de dia enquanto as andorinhas e os sabiás varrem o planalto serrano. Ainda oculto pelas matas, recebo outras vertentes e, juntos, ganhamos força para romper o pântano do qual o “João” recolhe o barro para fazer sua casa. Já na puberdade e cheio de vida, posso ver o sol que irrompe nas capituvas e erva-de-bicho que protegem meu leito. Sombreado pela ingazeira, o tucum protege seus frutos com espinhos pontiagudos ao passo que um bando de tucanos barulhentos, desperta a coruja sonolenta na fenda da velha, imensa e calada paineira, vizinha ao eucaliptal.
Já se foram alguns quilômetros entre as vegetações. Chegou o momento de sair da “casca” e enfrentar os campos abertos.
Liberdade.
Ciente de que toda cria é gerada para o mundo, o olhar apreensivo da mãe Natureza vê-me como um alegre menino a saltitar pela cachoeira adentrando ao vale côncavo onde o horizonte se mostra mais próximo. Ouve-se, ao longe, o cantar da seriema, entrecortado pelo pica-pau com seu potente “martelo” a perfurar as imbaúbas na incansável busca por insetos. Nas manhãs ensolaradas, no final do outono e início do inverno, quando os ares são mais claros e a vegetação mais verde, nota-se grande revoada de garças, socós e martins - pescadores enquanto que, no banhado, frangos d’água emitem seus cantos estridentes sobrepondo-se ao da jaçanã que corre por entre os arbustos. Não muito longe, na sombra das árvores, o gado bovino repousa e faz seu “repasse”. Entre tanta singeleza, eis que surge a caboclinha faceira. Traz a mala de roupas e sabão de cinza. Antes de iniciar o trabalho, aproveita a pureza do manancial que lhe reflete a imagem; lentamente ajeita as tranças de cabelos longos, esboça um sorriso tímido em que os lábios volumosos embelezam ainda mais a tez morena,já o brilho dos olhos ligeiros oculta sonhos que só ela conhece.
O declive acentuado faz o meu deslizar mais agressivo e adentro com ímpeto a barroca aonde encontro novos amigos que se tornam meus “afluentes”. Formamos, ali, uma unidade num só objetivo: desbravar o desconhecido. Sou guerreiro a alargar as barrancas que reprimem o meu leito. Quando a noite é silenciosa, ouço os corais extasiados de grilos “desafinados” e a sinfonia de sapos. Vejo a via-láctea, as estrelas cadentes e a lua que, como as emoções, se renova. Na época das águas, as enchentes fazem-me expandir pelas margens formando lagoas e remansos, atraindo curiosos e mentirosos pescadores, capazes de transformar um “enrosco” em imponente caso de pescaria. Nesse estágio, atraio também os pacíficos agricultores que buscam as planícies para implantarem cultivos. Em resposta, as hortaliças se tornam abundantes para o regozijo dos olhos puxados que as administram. Ainda a integração Homem-Natureza caminha lado a lado.
A pão e água.
Começo a adentrar ao primeiro centro urbano e a visão que tenho não me agrada. O menino que se ocultava no berço de folhas mortas, cresceu. Como adulto, sou levado a novas aventuras e passo a enfrentar novos obstáculos.  A concentração urbana é desordenada. A busca por melhores dias, mais conforto, faz com que as pessoas prefiram as cidades, o que contribui para a minha ruína. O meu deslizar ficou mais lento e, se antes a população era rarefeita, agora se transformou numa grande comunidade. Com as aglomerações, vêm às indústrias e, com elas, o limbo, os ácidos, as resinas e os dejetos concentrados dos esgotos. A pobreza urbana é incomparável. Se os caboclos da zona rural vivem espalhados pelos campos, providos de imensa simplicidade, creditam ao infinito seus sonhos e esperam com dignidade a sua realização, o oposto ocorre com os metropolitanos. Bombardeados de estímulos pelo consumismo, pelos excessos e pela promiscuidade, tornam-se marginalizados, povoam os lixões e se amontoam em barracos destruindo as matas nativas que me protegiam. Das desigualdades sociais originaram as favelas que se estendem por todos os lados. Atordoado pelo barulho infernal vindo da metrópole carrego os gemidos de um povo que se destrói dia-a-dia. Ouço os soluços de famílias miseráveis, todas as noites, vindo das palafitas ao meu redor. Se antes a serração pousava delicadamente sobre as matas, hoje, o que se tem, é uma nuvem formada por gases tóxicos. A poluição rouba a minha saúde, meu oxigênio e aniquila as algas que cuidam da minha pureza. A busca pelo desconhecido me levou a trocar a selva nativa pela de concreto onde acabei envolto por entulhos não recicláveis. Sou uma vida vazia a perambular pelas margens da grande cidade. A longa caminhada, no entanto, levou-me ao encontro de outras importantes vertentes. Com origens semelhantes a minha, deixaram seu habitat na missão obrigatória de percorrer os declives naturais e, hoje, iguais a mim e com as mesmas dificuldades, nos unimos e formamos uma comunidade. Parte de nosso passado foi temporariamente esquecido. A união de vários córregos e vertentes tornou-se num único e caudaloso rio. Juntos, somos mais fortes, mas ainda frágeis diante das atrocidades humanas. Seus cidadãos vivem encabrestados por clãs que lhes traçam os destinos. Comem por suas mãos e rastejam mediante seus chamados. Os sonhos individuais já se foram. Não há esperanças com relação ao futuro, pois, para tal devaneio, é necessária a manutenção plena da biodiversidade. A cultura humana não concebe tamanha grandeza. Sua conduta é voltada para si e seus caprichos. Veja o nosso exemplo: despontamos nas serras e caminhamos pelos vales. Em nosso trajeto, levamos a vida em abundância a todos os seres ribeirinhos e o que lucramos?.. Maus tratos?... Abandono?...Num passado não muito remoto, nos fins de semana abrigávamos as canoadas, as competições esportivas. Hoje, vivemos como mendigos inundados pela decomposição de restos alimentares; cegos, pois não refletimos a lua nem as estrelas, ou a aurora. Semimortos, a vida aquática que caminha conosco se fez doente. Com a obstrução de nossa via de trajeto, a enchente nos expande, então mostramos a nossa ira invadindo casebres, as mansões, as marginais. Travamos uma luta inglória. A cada prejuízo que causamos, é caso de ascensão política, motivo para a busca de capitais no exterior que irá patrocinar grupos que se dizem amantes da Natureza, mas que pouco fazem pela fonte natural da vida.
Consenso.
Sobrevivemos ao caos urbano. Atravessamos a pior parte de nossa jornada. Procuramos nos refazer ao estrago que sofremos, contudo, não haverá tempo suficiente para a nossa total recuperação. Jamais voltaremos à pureza da infância, à curiosidade da puberdade, cobertos que estamos das marcas que o destino nos deixou. Restam muitos quilômetros para concluirmos a viagem, mas estamos cansados. A sociedade envelheceu, nosso vagar é lento. Resta em nós a lembrança do canto da cigarra que, no verão, se “arrebentava” de tanto cantar. Da criança que engatinhava nas vertentes ou que saltitava nas cachoeiras. Não temos mais o corpo esbelto da adolescência, nem o tipo viril que alargava as barrancas. Não há grandes florestas nativas, o verde que temos são lavouras temporárias em nossas margens. O desconhecido, que era sonho, virou uma realidade sem alarde. Não fizemos os nossos destinos e sim seguimos pelas trilhas tortuosas que ele nos traçou e com passagem só de ida.  Próximo à reta final, a construção dos açudes deixou nosso corpo deformado; estamos vivos, mas fora de forma. Perdemos as linhas esguias da juventude e a força desbravadora dos adolescentes. Não se ouve mais o som monótono da garoa se espalhando pelos cafezais e nem se vê as danças harmoniosas dos tangarás nas galhadas. A paisagem que inspirava poema lírico deu lugar às lanchas e ao esqui aquático. Resta a lembrança dos grandes amigos “afluentes”. O rio das Monções, a estrada que transportava o Bandeirante, hoje embala os casais enamorados em suas descobertas. Somos a via que sustenta as barcaças, o leito que abriga os peixes, a fonte que irriga as plantações. Prevalecem os alarmantes pescadores; o fio dental e o “top less” afastaram a garota sonhadora, charmosa e humilde. Mas nem tudo é tristeza. A caminhada elevou meu nome, o mundo conhece minha história e as gerações futuras hão de conhecer-me. Entre tantos, esbanjo notoriedade.
É o consolo daquele que nasceu, cresceu e se integrou numa sociedade, assim como você; porém, meu infinito é o mar...Sou o Tietê!

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Suburbanos.


     É madrugada, o sol ainda não despontou e uma multidão já toma as ruas. Vão os atrasados, os estudantes, os industriários, pessoas com poucos recursos; o sapato quase rasgando, roupa fora de moda... é o melhor que eles têm. No fundo, sabem que vai chegar o dia em que tudo dará certo; vai ser como um tiro certeiro... na mosca! Será como tirar a sorte grande, como um gol aos quarenta e seis minutos... na gaveta!
A maioria segue seu caminho, a eterna rotina que se estende por longos anos. Como são muitos - agrupam-se – e, juntos, sobrevivem às devassas. Agremiados, criam sua própria gíria e seu dialeto é forjado em palavrões, gestos obscenos. Baseiam-se na força e subjugam o lado sensível, temeroso de serem incompreendidos. Externam as suas emoções em trajes provocantes, usam tatuagens, estampas exóticas em manifesto ou em protesto contra uma causa que nem eles próprios sabem definir. Conhecem o submundo, os vícios, as drogas; sabem da dor e da solidão. Escravos do sistema, envolvem-se com qualquer propaganda. Falam alto, são exagerados, admiram Stallone, Van Damme; veneram os mitos que fazem tudo aquilo que eles são incapazes de fazer. Mesmo sendo obra fictícia, deixa-os extasiados porque os "caras são demais, arrebentam"!
Criativos, fazem a própria moda; "curtem" o que é soft, "transam" tudo o que é diet, gostam de samba, de funk, de pagode e de tudo o que é divertido, lascivo e provocante. Divertem-se com os deboches, gostam do "rala coxa". Destemidos, são guerrilheiros que doam seu sangue por tão pouco. Constituem a maioria nas festas, nas filas, nos hospitais. É a massa que alimenta o comércio, as indústrias; é a mão forte que mexe o concreto, que trabalha a terra e a faz produzir. São os alicerces da sociedade, aptos para o trabalho pesado onde a tecnologia se faz improdutiva. Crescem desordenados, com dentes cariados, sorrisos tímidos, envolvidos de malícia, porque os homens só se fazem sinceros quando se veem acuados; e, se a vida não lhes confiou fortunas, os “macetes" para a sobrevivência eles os têm desde a infância.
O horóscopo do dia afirma que haverá surpresas; que alguns passam pelo inferno zodiacal. Outros estão na fase dos grandes amores e há aqueles que se sentem no paraíso astral. Jornais e revistas reservam espaço em suas publicações. Trazendo presságios para todos vai despertando a situação ambígua que influencia as pessoas, as ideologias, os grandes "lances", o mundo empírico de cada um e que os leva a uma busca constante e infrutífera de sua real personalidade. Que Paraíso seria esse se há coisas grotescas acontecendo?...Também não é Inferno, pois têm momentos inesquecíveis e, por serem humildes, desconhecem suas forças e o que poderiam fazer por seus mundos. Nesse paradoxo, passam pela vida, repetindo chavões e bordões inexpressivos. Possuem, no entanto, uma certeza: logo chegará o dia em que não será necessário conquistar as coisas no "grito"; será como tirar a "sorte grande", uma grande "tacada", uma flecha certeira... na mosca!... Tão agradável como uma bola metida no ângulo, aos quarenta e tantos minutos... Indefensável!... é só esperar.

sábado, 13 de setembro de 2014

Espelho Negro.

Se por instantes fechamos os olhos e tampamos os ouvidos, é como se desligássemos do mundo. Tudo repousa. Cessa a ansiedade. Atenua-se a sofreguidão adolescente na busca desenfreada dos sonhos pessoais.Humildes, orgulhosos, pobres, ricos, anões, mutilados, enfim, todos que alimentam em si o sopro da vida, quando voltados ao seu próprio interior, não manifestam oposição nesse mundo igualitário, oculto na real essência do ser. Estando "cegos e surdos", aflora-se o tato; as percepções são calmas; não há dor. A insegurança silencia no caldeirão efervescente da mente confusa que a vida sedentária fermentou. Sentem-se as artérias e o coração a pulsar dando vida ao corpo, ferramenta imprescindível às ações do cotidiano. Momentos de relaxamento levam a esquecer a necessidade de competir, de ir além do limite, e o raciocínio torna-se lógico.
Nessa viagem, há tempo para ouvir o vento, sentir que a palmeira é silenciosa, que o oceano é pacífico. Momentaneamente tomamos as rédeas do destino e a insípida realidade faz-se um palco, onde os projetos fantásticos são realizáveis...Mas ao abrirmos os olhos, veremos que a palmeira, com a força invisível do vento agita os ramos; o oceano, antes manso, se eleva e, num clima frenético, desperta tempestades e furacões aterrorizando os seres vivos... Se destamparmos os ouvidos, ouviremos o clamor dos agonizantes na eminente derrota contra os poderes públicos; o mendigar de pessoas com seus conflitos íntimos, sem objetivo, a buscar esperanças na dualidade entre céu e inferno, pontos extremos que a cultura incentivou e que limita as ações individuais. Isso as tornam inimigas, perseguidoras, traidoras da própria raça, a ignorar valores que a guerrilha diária subjuga.  
Os olhos fechados fazem com que vasculhemos na escuridão. É como um espelho negro que não reflete imagens, mas permite que se encontrem valores pisoteados pelas conveniências do dia-a-dia. Deixa-se evidente que, os seres vivos, são livres para se aliarem a quem bem lhes convier. A Natureza não gerou inimigos, mas soldados providos de dons natos e que devem lutar para a sua realização, cujos prêmios são: a sabedoria e a experiência. As divergências são como uns quebra-cabeças em que tudo se encaixa, e o objetivo maior é que vivamos em paz, num mundo onde os dias e as noites podem ser mais felizes, como no Natal.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Profissão dentista.

Entre os profissionais liberais, os dentistas são os únicos que conhecem todos os "podres" de seus clientes.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Piracema em três atos.

1.° Ato
Piracema é um ato natural praticado pelos peixes buscando nas cabeceiras um local apropriado para a sua desova. O instinto natural os leva a um exercício extremo no alcance das águas mansas onde os alevinos têm maior probabilidade de sobrevivência. Aqueles que conseguem seus objetivos depositam suas ovas para serem fecundadas e retomam o caminho de volta. Na tentava de superar os inúmeros obstáculos muitos morrem ou são impedidos de completar sua viagem; outros tantos são capturados por predadores que se alimentam de suas carcaças. O mesmo ocorre com as larvas frente a seus inimigos. Estima- se que muito pouco do que foram fecundados sobrevivam; segundo estudos feitos por renomados estudiosos, cerca de 1% dos alevinos atingem a vida adulta. É um fenômeno que ocorre entre novembro a fevereiro de cada ano.
2.° Ato 
Há um movimento social que, grosseiramente, assemelha-se a piracema. É a marcha dos candidatos a cargos eletivos que disputam as eleições no Brasil democrático. Vigora, a cada biênio,  de agosto a outubro podendo se estender até novembro, quando há segundo turno. É o tempo em que as mais distintas e estranhas figuras saem de suas casas (ou toca) e avançam em todas as direções. Como nos cardumes, eles também gastam suas reservas na divulgação de seus ideais povoando as ruas, invadindo as favelas, atingindo os pontos mais longínquos. Estampam nas calçadas, nas praças os seus banners, as suas placas.Vivem cercados por espertos e bajuladores que consomem suas finanças. Depositam seus panfletos (ovas) nas caixas de correios e, na falta desta, sem o menor pudor, espalham seus santinhos pelo hall ou pela calçada esperançosos de que sejam aceitos por toda a família. Feitos as "desovas", tantos os empregados como os responsáveis voltam para sua casas. Como no primeiro caso, a maioria se perde em campo e menos de 1% saem vencedores de tão árdua conquista.
3.° Ato
 Em Salesópolis, após a alteração do trajeto da linha de ônibus que serve à cidade, os moradores se vêm obrigados a fazer algo parecido; o que levou um incisivo vereador a classificar tal ato como piracema. Tendo pela frente uma longa jornada até Mogi das Cruzes e adjacências, eles caminham em direção à Nascente, na tentativa de conseguirem bancos disponíveis para fazerem o traslado sentados. Lá vão os estudantes, profissionais liberais, professores misturados com os veranistas dos fins de semana.  Isso ocorre todos os dias nos horários de pico. Jovens, adultos seguem a dura rotina para a manutenção de seus sonhos, de sua saúde, de suas vidas.
Epílogo.
Façamos agora um último adendo a cada caso. O primeiro deles é algo natural, instintivo e que mantém a espécie sobrevivendo os mais fortes na cadeia alimentar. Dura entre dois e três meses no ano, mas é infinita.
O segundo caso é parecido. Enquanto o direito do sufrágio universal existir, sempre haverá alguém usando de habilidade, de astúcia para convencer os desinformados, os humildes e ingênuos a lhes conceder o direito de viver o seu sonho.

Por fim, o terceiro caso é o mais infeliz de todos. Nele está em jogo não a glória, a riqueza, mas o mísero conforto de uma viagem que antecede um dia de trabalho, de estudo e, às vezes, os dois ao mesmo tempo. É uma batalha onde não uma vitória definitiva, mas pequenas conquistas que precisam ser vencidas todos os dias e sem a perspectiva de melhoria. Então fica a pergunta: Essa piracema salesopolense também é eterna? 

Imagem. google.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Olhos felinos.

Era o fim da hora de “rush” naquela casa. Depois de tanta agitação a paz retorna àquela família. A porta do quarto se encontra entreaberta e, alheia a tudo, ali deitada na cama, mostrava sinais de despertar daquele sono improvisado da tarde. Era uma madorna, um estado de vigília de onde se podia ouvir e sentir tudo o que acontecia ao redor.A fronha macia e colorida e os pôsteres na parede formavam uma decoração harmoniosa. Com um esforço maior pode sentir que a noite já ia alta e não chovia. A cortina permanecia estática - mesmo com a janela aberta - prova que a calmaria reinava do lado de fora. Pelo corredor dava para ouvir o ruído vindo da sala de estar. A televisão, como sempre, trazia a mesma programação mórbida. Movendo lentamente as pálpebras foi descortinando a penumbra do quarto mal iluminado pelas réstias vindas do corredor. Os olhos azuis se esforçavam para reconhecer os móveis, só com a total dilatação das pupilas foi possível fazer o reconhecimento do cômodo. O coração foi se acelerando e com grande esforço, num longo espreguiçar fez distender toda a coluna vertebral e os membros superiores e inferiores. Bocejando longamente se levanta. Ainda sem muita disposição caminha lentamente pelo corredor indo até a cozinha onde, sem muita cerimônia, belisca algo aqui e ali. Os pratos e talheres estão amontoados na pia. Há restos de saladas na travessa, ossos sobre a toalha de plástico na mesa, uma desordem; pudera, a família estava reunida em seu principal ponto de comunhão diário: o seriado das oito. Deixa a cozinha. Não vai jantar. Arrotos expõem o resultado da mistura de petiscos que provou no decorrer da tarde. Entra na sala onde a família estava reunida em silêncio diante da tevê. O drama caminhava para o final. Com a respiração contida, olhares indagantes e recíprocos, digerem as novidades no vídeo expostas. Ela, por não gostar de drama ensaiado, passa desapercebida e, passeando por sobre o tapete árabe, ganha o terraço. A brisa noturna traz sinais de poluição, odores estranhos que, no inverno, intensificado, irritam os olhos, os pulmões e toda a flora confinada nos vasos estrategicamente ali distribuídos.
Acostumada com a rotina estafante, solta a imaginação, mas tudo é incerto. A noite reserva mistérios. Tudo pode acontecer ou nada de novo poderá vir à tona. É uma aventura em território conhecido, mas as trevas são próprias para seus habitantes. Nos seres diurnos, a escuridão acentua a sensibilidade, enaltece a libido e pode provocar sentimentos confusos; portanto, embora seja uma conhecedora dessa área, não ignora os riscos sabendo que poderá ser uma busca surpresa.
Aproveitando-se da paz ali encontrada, agarra firme nos balaústres coloridos alongando novamente toda a coluna vertebral. Em seguida se contorce de forma suave movendo os músculos peitorais, lombares e das pernas. Respira fundo e volta pra sala.
Plantada em frente à tevê, sua família, agora, debate de forma ardorosa as cenas exibidas enquanto os comerciais divertem seduzindo os telespectadores. Outra vez não é notada. É hora de se preparar e um demorado banho é essencial.
Alheia às dificuldades, começa pelas narinas, depois os olhos; cuida das orelhas e da nuca. O cartão de visita está pronto. Boa expressão é fundamental e os olhos e as sobrancelhas, bem cuidadas, são capazes de transmitirem emoções, Além, é claro, de serem essenciais à percepção e proteção.
Retoma a viagem. Agora, pelo pescoço indo até a omoplata e descendo até as unhas e retornando por outro lado. Em seguida, reinicia pelo lombo e faz a longa descida pelas vértebras passando pelas nádegas e prolongando pelo lado esterno das coxas complementando até os pés. Vira de lado e subindo por outra perna indo alcançar novamente a nuca. Agora, de costa, fita o teto e a tela branca ganha cores além dos azuis dos olhos e vai projetando nela os seus desejos. Por ser jovem, muita coisa ainda a inquieta. Desconhece a fome, a solidão e, por gozar de extremo conforto, ignora o temor pelas adversidades. Desconhece os terremotos, os temporais e os invernos rigorosos. Sempre amparada, seu íntimo a impele a buscar novas descobertas, a desvendar certos mistérios que a incomodam. O instinto a chama, a comodidade a cansa. Há coisas mais interessantes para se conhecer além do conforto reinante entre as quatro paredes. Os estímulos naturais de reprodução já manifestam trazendo brilho no olhar, odores excitantes e as glândulas da fertilidade trabalham intensamente inundando seu corpo com os hormônios próprios do sexo. É visível sua agressividade contida intercalada com extremos atos de carinhos; mas, antes de tudo, é imperioso aprimorar as defesas, treinar os ataques, conhecer os desejos e só então provar do que é novo para descobrir as regras do velho mundo, mas em sua ótica!
Precisa saber das dificuldades e das novidades que o dia-a-dia prepara. Quem não ousa na adolescência acaba tornando-se um adulto receoso. A dor, o medo, a morte, lá fora, na noite a espreita, mas é a vivência diária desses desafios que trarão os aprendizados, os quais vão se fixando lentamente e, nessa escola, o aprovado tem direito a uma vida farta de prazer e alegria. Respira fundo; é isso que ela quer conhecer e retorna o banho. Com toques suaves - mas decidido - acaricia o queixo sensual descendo pela garganta indo até o antebraço; volta pelo colo, mas é interrompida por ruídos nos apartamentos, pessoa conversando em tom elevado, alegre; foi só um momento. Sentindo-se novamente segura, toca delicadamente sobre os mamilos, ainda jovem, descaindo pela barriga, a qual mostra sinais de gorduras localizadas resultante da vida sedentária que leva. Isso, no entanto, não a incomoda e, elevando as pernas ao alto, as vem acariciando, lentamente, uma e outra, apreciando da maciez dos lados internos das coxas chegando até ao púbis onde cuida generosamente da fina plumagem ali estabelecida. É hora de uma nova retocada por todo o corpo, costa, orelhas e permanece relaxada. Pouco depois já caminha pelo corredor em direção ao quarto.
Que horas seriam?...Não importa. Quase oculta pela claridade do néon, a lua vai alta e próxima da cheia, o que justifica o furor interno na inquietante explosão da libido que pulsa por todo o corpo. Na sala, houve dispersão geral. Há ruídos de pratos sendo enxaguados na cozinha e conversa descontraída nos quartos. Chegando ao terraço, com as orelhas em riste, fixa na cidade que aos poucos vai se acomodando. Contempla longamente o horizonte e, voltando-se para o lado, vê a escada de emergência que é próxima da sacada. Basta ultrapassar o parapeito e seguir equilibrando pelos detalhes arquitetônicos que em breve ganhará as ruas e, com olhar felino e instinto de aventureira, vai invadir a noite; porque enquanto a cidade dorme, é a hora dos gatos irem à caça.