quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Os dois lados da moeda.

O fantástico mundo da ilusão está à disposição de todos. A qualquer hora vemos, por entre as nuvens, grupos de pessoas que voam alegremente; da mesma forma, na terra, bandos de gatos fazem cabos de guerra com pitibuls. Veem-se borboletas conversando com as flores, uma manada de leões aplaudindo o desfilar de saudáveis gazelas. O incrível mundo onde os animais se confraternizam insiste que, nele, o beijo é técnico e as insinuações sexuais, também.
A televisão, com pouco mais de oitenta anos de existência, ocupa um espaço impensado pelos  homens que a inventaram. Gera ilusões; é educativa e, ao mesmo tempo, dispersiva. Sendo fruto do capitalismo, qualquer minuto pode valer milhões. É penetrante; seus anúncios, mesmos os mais absurdos, vão aos poucos se enraizando nas mentes estressadas transformando o indigesto em elegante, o cafona em moda. Por estar diretamente ligada ao consumidor traz sempre novidades. Tornou-se informante de verdades e inverdades; é capaz de mergulhar nos abismos oceânicos trazendo à tona animais que jamais viram a luz solar. É capaz de mostrar um óvulo se desprendendo do ovário; as veias internas, os canais do sistema digestivo. Por estar ligada à base exploratória da opinião pública, vive criando furos jornalísticos e ocultando vexames políticos. Nos horários vespertinos exploram a miséria em busca de audiência; cultua o ridículo, o tacanho em busca de debates. Nos programas “chamados populares” exibem “gatos e gatas sarados”, de “cabeças vazias” estimulando o lado sensual que a humildade tem em abundância: a imaginação fértil para assimilarem os modelos talhados pelos clérigos, os noveleiros e poetas, transformando instintos reprodutivos em amor com os mais diversos adjetivos. É um veículo contraditório; por um lado traz cultura, por outro, o estímulo à violência como entretenimento. Mistifica assuntos banais, mas é a desvendadora de mistério e tabus. Seus refletores aceleram processos, faz recuar o político oportunista, porém, é retaliatória, direcionando os melhores programas aos canais fechados, indiretamente, alimentando a divisão social. Sua imponência a capacita a fazer o bem a toda à humanidade, contudo, seus diretores preferem louvar a desgraça do agreste a cobrar da elite providências para salvar aquele povo. No fim de noite, por exemplo, mostra em cadeia nacional o teatro encenado pelos políticos, com seus coadjuvantes, e o humor bestializado dos tiriricas da vida. É a fonte preparada para publicar os feitos e as mazelas do mundo, no entanto, nas eleições, investe nas pesquisas; indiretamente, induzindo os eleitores a apoiarem seus interesses. É um veículo que cumpre a sua função e, pelo avanço conquistado, mostra que traduz a exata aspiração de seus povos. Faz coisas glamorosas, mas peca pelo excesso de ilusão.
Sendo obra humana, justificam-se tais imperfeições. Pudera. Afinal, vivemos num mundo onde cães, gatos, leões e antílopes são inimigos naturais.

(A tv é) “Um monstro na frente do qual as pessoas irão desperdiçar sua vida”.

Philo Farnsworth (1906-1971), reconhecido como o autor da televisão.  Revista Superinteressante – 11/1999.