Sobre
a cadeira de balanço pairava a figura terna do velho José. O seu “Zé” de
alguns, o “tio Zé” de outros. O olhar cansado de tantos anos buscava no vazio,
mas “ela” não estava. Nada além da brisa vespertina que dava movimento às
samambaias em seus xaxins.
Envolto em seus pensamentos e com os óculos
sobre o nariz, momentaneamente desviou sua atenção e agora se esforçava para
ver o que a revista juvenil de sua neta mostrava. Era algo sobre flacidez e
fornecia alguns exercícios localizados para eliminar tal desconforto. O que
mais lhe chamou a atenção foi o corpo nu da modelo. Deitada de bruços e
ocultando dos flashes as partes “vitais”, a jovem era de escultura perfeita e
totalmente bronzeada; fato esse que o fez recordar de um ocorrido num passado
distante. Aos dezoito anos e com o casamento marcado, acabou por ser vítima dos
amigos da época que lhe aprontaram uma surpresa. Meses antes do enlace,
promoveram uma festa na cidade - num quarto de hotel para ser mais exato-;
queriam saber de sua opinião sobre as condições de aluguel daquele cômodo.
Embora estranhando o convite, aprovou as condições crendo que seria um bom
negócio e isso foi motivo para uma alegre comemoração. Ficou intrigado pelo
fato de serem pessoas simples, mas optaram por bebidas caras chegando, até
mesmo, a um legítimo “blended” escocês. Não tardaram as consequências; os olhos
turvavam, as pernas ficaram bambas. Era hora de parar. Outra nova surpresa:
ninguém protestou e ordeiramente foram saindo, um - a – um, até que o último
lhe pediu que apagasse a luz do banheiro. Com a mente confusa obedeceu e, num
único toque, impôs o breu àquele cubículo anexado ao quarto. Voltou e se
dirigiu à porta, mas ela havia sido fechada por fora. Ocorreu-lhe a forte
sensação de que “ela” estaria ali. Perturbado, olhou em volta, mas antes que
chamasse por alguém, o que viu o fez estremecer. Uma mulher, toda maliciosa se
irrompeu pelo ambiente e o agarrou. A princípio, tentou desvencilhar-se.
Fervilhava na mente o desabono do padre Azevedo; podia ver sua mãe, em prantos,
fazendo penitência; sua noiva o desprezaria..., mas era tarde. Com apetite
voraz aquela esfomeada o devorava literalmente. Na inútil tentativa de repeli-la, lembrou dos amigos que, com
certeza, estariam por perto a observá-lo. Deu-se por vencido e, pela primeira
vez, sentiu que seu espírito foi elevado pelos confins do espaço cósmico. Só
mais tarde, quando recobrou a consciência, foi que notou que ela ressonava de
bruços, tal e qual aquela modelo da revista, mas, com uma ressalva: não era o tipo
ideal para aquele anuncio. Com os maus tratos das noites, as bebedeiras, as
extravagâncias, fizeram com que seu corpo, apesar de jovem, ostentasse todos os
defeitos que as mulheres detestam e os homens condenam: estrias, celulite,
gorduras localizadas. Mas, afinal, que diabos estava ele pensando nestes
disparates?... se autocensurando, chegando até a ruborizar as faces, fechou a
revista, livrou-se dela e mudou de lugar.
Lá dentro, os netos fazem a tradicional arruaça; os
meninos usam argolas nas orelhas; vivem coçando a virilhas, ouvem músicas
barulhentas - dizem que é moda - mas, se ocorre um momento sequer de distração,
os olhos buscam no horizonte e, em silêncio, indagam: “ela” estaria lá? Reina a
inquietação de que tanto lhe ocorrera nas inúmeras noites, desde a infância.
Depois da fatídica experiência daquele quarto de
hotel, casou-se e viveu intensamente aquela união. Em nenhum momento, porém,
distanciou-se “dela”. Na chegada do primeiro filho, enquanto sua esposa
agonizava nas contrações, percebia-se “sua” presença. Outros vieram, filhos e
filhas, somaram-se doze; todos saudáveis e sapecas. Em todos os nascimentos,
surgia como uma ansiedade, um arrepio; era a “sua” presença. Lá, nas grandes
navegações, nos cultos pagãos, nas guerras mundiais “ela” estava. Bastava
despontar alguma duvida, “algo” espreitava. Em todos os aglomerados, estádios
de futebol, trens lotados; onde há vida, há a “expectativa” e isso já o
acompanha há muitos anos.
Num dia muito
triste sua esposa deixou seu convívio. Complicações múltiplas fizeram-na
expirar. Com a sua partida, muito se chorou, mas o tempo se encarregou de
atenuar todo o desconforto e as mágoas foram estancadas. O acúmulo de anos o
fez compreender que a partida de alguém é algo tão natural quanto a sua
chegada. O que leva as pessoas se apegarem as outras, como se fossem suas, nada
mais é do que a ação do egoísmo e da ignorância. Na vida, nada nos pertence!
Tudo gira em torno de uma Força Maior que a todos coordena e os dota de
talentos natos para que deles utilizem. Ninguém, portanto, é propriedade de
ninguém. A terra é imensa e os homens necessitam de tão pouco para viverem. Há
espaço para todos e os grãos e as hortaliças, se semeados em épocas apropriadas
e cuidados com presteza, produzem em abundância. Bom para as pessoas é ser
livre, ter companheirismo, calor humano, mas tudo isso é gratuito e se renova
em seu interior. O que os faz perecer são as aglomerações e as disputas por
lideranças. Nestas questões, invariavelmente “ela” está envolvida. Que o digam
os movimentos militares, sociais e políticos, os protestos de ruas onde os
jovens eram chamados a povoar os parques, as ruas, sempre obedecendo às
doutrinas ministradas por lideres que almejavam e conseguiram os seus intentos.
Hoje, são presidentes, governadores, figuras condecoradas e, a massa
heterogênea que repetia em coro as palavras de ordem, continua lá, obrigada a
pagar em dia seus tributos e a ver os chefes, com suas armações, sangrarem a
força que move o mundo. Pediram apoio e retribuíram com medidas provisórias, decretos
que freiam as ideias realmente sociais. Investiram no futuro, enfrentaram todos
os obstáculos; mas, no afã de vitória, esqueceram de um mundo fantástico que
ainda espera para ser desbravado. Oculto nos planaltos e serras, repousam
cachoeiras cristalinas, ares puros e céu que na noite quase sempre é estrelado;
fontes vitais que proporcionam ao ser humano o que ele mais necessita:
qualidade de vida.
A posição em que se encontrava se fazia incômoda.
Descruzando as pernas, vê que uma de suas netas se aproximava, lentamente, como
que se esperasse uma ordem para entrar no mundo místico do avô. Ostentando o
corpo já formado, reluz o piercing no umbigo devido à blusa curta e a calça de
cós rebaixado e ostenta nos olhos o fogo do desejo. É esperta, uma garota normal
para a sua idade. Lentamente se ajeita ao lado do velho e fala de suas
aventuras, de suas esperanças para com o futuro, onde a grandeza e o exagero
estão presentes. Todo jovem é assim. Almeja muito, mas a vida vai modelando e
priorizando os fatos mais importantes. Os contratempos são necessários para que
o espírito não se perca em coisas fúteis e possa amadurecer cultivando cerne em
seu interior que o galvanizará nas quedas diárias. Confiante, ela ajeita os
cabelos e, beijando carinhosamente o avô, o deixa com seus pensamentos.
Todas as lutas e desejos são obras oriundas das
concentrações desordenadas que favorecem a ambição e, essa gana, acaba por
roubar-lhes os momentos mais marcantes. Tudo é passageiro, mas as boas e más
lembranças perduram. Com olhar distante e sentindo o cansaço de sete décadas de
trabalhos, prazeres e dificuldades, ele mantém sua viagem no mundo das
ponderações. Hoje, entretanto, “ela” que sempre o aguardava no dobrar da
esquina, no ruído do sótão; agora, se faz cada vez mais presente. Está por trás
dos conflitos do Oriente Médio. “É” a coragem obcecada dos ‘homens e mulheres
bombas’ que aterrorizam Israel. Está oculta no ódio, no temor americano e foi uma das causadora das lágrimas em Kandahar. É possível “senti-la” a cada instante. Já
se manifesta em seus membros; é a companheira das longas noites; é o temor do
cão-vigia que ladra, a parceira do quarto escuro ou dos sons emitidos pelos
seres noturnos. Dos sonhos, é a realidade; dos devaneios, a sensatez; é o fim
de todos os ideais. Só no apogeu dos anos foi possível ver quão ditosos foram
os dias do amanhecer ao pôr do sol. Quão gratificante foi ver os filhos
crescerem e se multiplicarem. O que dizer das memoráveis tardes de verão ao
lado das grandes amizades?... A vida tem sentido e se faz maravilhosa quando é
compreendida, mas nada é eterno! É necessário remover o tronco para que o broto
frutifique. É fundamental substituir o velho para que o rebento floresça. O sol
tem que ser por para que a nova aurora desperte. Assim, quando “ela”, a morte,
em sua hora, impor os seus desígnios, que seja de forma natural e tranquila,
como a brisa de verão ou como o revoar de gaivotas por sobre o banhado em
direção ao poente.
Depois da batalha, aos vencidos pela labuta diária, enquanto
aguardam na urna, retomam o semblante de crianças saudáveis quando repousam;
|
notícias.uol.com.br |
pois dos mortos, até os mais ferrenhos inimigos compadecem. Jazem com eles as ganâncias,
as divergências, os atos aparentemente premeditados, as maldades incontroladas.
Os contrastes ocorridos foram choques de opiniões, visto que o mundo, com suas
inquietações, gerou neles o desejo ardente de unificá-lo. Além do mais, os
humanos, mesmo diferenciados e incultos, têm em si a mesma origem. Uma vez
tombados e adornados, retomam a essência divina. Mesmos os mais agitados,
quando ali se encontram em paz, assumem a verdadeira identidade: não passam de
anjos; seres que foram contrariados na busca de seus verdadeiros ideais.
- ‘Vô’!...Vem jantar! A
neta lhe chama. É hora de despertar e retornar de sua viagem. Reunindo suas
forças e arrastando a sandália, o ancião segue ao encontro de seu maior
tesouro: a família.