segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Rio Tietê. (Conto)

In natura.
Tucano- Google.
Há quem diga que sou uma dádiva, um encanto, um mistério. De fato, sou fruto da relação entre o sol e o mar; gerei-me em vapor, elevei-me ao ar, a brisa me transportou e lá, nas encostas da serra, no ventre da terra, o sopro da vida se apossou de mim. Sou menino franzino a engatinhar por entre as folhas secas, em alegre folguedo, deslizo pela grota. Na inocência da infância sou contagiado pelo clima silvestre que rodeia o meu caminhar. No vale encantado, onde a Natureza impera, vou seguindo a trilha. Um lugar paradisíaco em que as abelhas disputam as flores com os colibris apressados enquanto o bem-te-vi observa ao longe. O berço protegido pelos biris, chapéus-de-couro e os cerrados não ocultam o ipê que guarda suas pétalas para expô-las na primavera. Tatus-mirins saem de suas tocas e se alimentam no sauveiro. Passo despercebido pelas ramadas onde o guaxinim vigia a jararaca que se arrasta sorrateira no encalço de pequenas rãs e ninhos de camundongos. Há jogos de sedução e até lutas violentas em toda a fauna. São regras do jogo da vida, das quais, nenhum ser vivo é excluído. Assim, a borboleta cobre de inveja às mariposas que preferem fazer suas revoadas à noite. Da mesma forma, os morcegos repousam de dia enquanto as andorinhas e os sabiás varrem o planalto serrano. Ainda oculto pelas matas, recebo outras vertentes e, juntos, ganhamos força para romper o pântano do qual o “João” recolhe o barro para fazer sua casa. Já na puberdade e cheio de vida, posso ver o sol que irrompe nas capituvas e erva-de-bicho que protegem meu leito. Sombreado pela ingazeira, o tucum protege seus frutos com espinhos pontiagudos ao passo que um bando de tucanos barulhentos, desperta a coruja sonolenta na fenda da velha, imensa e calada paineira, vizinha ao eucaliptal.
Jararaca- Google
Já se foram alguns quilômetros entre as vegetações. Chegou o momento de sair da “casca” e enfrentar os campos abertos.
Liberdade.
Ciente de que toda cria é gerada para o mundo, o olhar apreensivo da mãe Natureza vê-me como um alegre menino a saltitar pela cachoeira adentrando ao vale côncavo onde o horizonte se mostra mais próximo. Ouve-se, ao longe, o cantar da seriema, entrecortado pelo pica-pau com seu potente “martelo” a perfurar as imbaúbas na incansável busca por insetos. Nas manhãs ensolaradas, no final do outono e início do inverno, quando os ares são mais claros e a vegetação mais verde, nota-se grande revoada de garças, socós e martins - pescadores enquanto que, no banhado, frangos d’água emitem seus cantos estridentes sobrepondo-se ao da jaçanã que corre por entre os arbustos. Não muito longe, na sombra das árvores, o gado bovino repousa e faz seu “repasse”. Entre tanta singeleza, eis que surge a caboclinha faceira. Traz a mala de roupas e sabão de cinza. Antes de iniciar o trabalho, aproveita a pureza do manancial que lhe reflete a imagem; lentamente ajeita as tranças de cabelos longos, esboça um sorriso tímido em que os lábios volumosos embelezam ainda mais a tez morena,já o brilho dos olhos ligeiros oculta sonhos que só ela conhece.
Lambari- Google
O declive acentuado faz o meu deslizar mais agressivo e adentro com ímpeto a barroca aonde encontro novos amigos que se tornam meus “afluentes”. Formamos, ali, uma unidade num só objetivo: desbravar o desconhecido. Sou guerreiro a alargar as barrancas que reprimem o meu leito. Quando a noite é silenciosa, ouço os corais extasiados de grilos “desafinados” e a sinfonia de sapos. Vejo a via-láctea, as estrelas cadentes e a lua que, como as emoções, se renova. Na época das águas, as enchentes fazem-me expandir pelas margens formando lagoas e remansos, atraindo curiosos e mentirosos pescadores, 
Tilápia - Google
capazes de transformar um “enrosco” em imponente caso de pescaria. Nesse estágio, atraio também os pacíficos agricultores que buscam as planícies para implantarem cultivos. Em resposta, as hortaliças se tornam abundantes para o regozijo dos olhos puxados que as administram. Ainda a integração Homem-Natureza caminha lado a lado.
A pão e água.
Começo a adentrar ao primeiro centro urbano e a visão que tenho não me agrada. O menino que se ocultava no berço de folhas mortas, cresceu. Como adulto, sou levado a novas aventuras e passo a enfrentar novos obstáculos.  A concentração urbana é desordenada. A busca por melhores dias, mais conforto, faz com que as pessoas prefiram as cidades, o que contribui para a minha ruína. O meu deslizar ficou mais lento e, se antes a população era rarefeita, agora se transformou numa grande comunidade. Com as aglomerações, vêm às indústrias e, com elas, o limbo, os ácidos, as resinas e os dejetos concentrados dos esgotos. A pobreza urbana é incomparável. Se os caboclos da zona rural vivem espalhados pelos campos, providos de imensa simplicidade, creditam ao infinito seus sonhos e esperam com dignidade a sua realização, o oposto ocorre com os metropolitanos. Bombardeados de estímulos pelo consumismo, pelos excessos e pela promiscuidade, tornam-se marginalizados, povoam os lixões e se amontoam em barracos destruindo as matas nativas que me protegiam. Das desigualdades sociais originaram as favelas que se estendem por todos os lados. Atordoado pelo barulho infernal vindo da metrópole carrego os gemidos de um povo que se destrói dia-a-dia. Ouço os soluços de famílias miseráveis, todas as noites, vindo das palafitas ao meu redor. Se antes a serração pousava delicadamente sobre as matas, hoje, o que se tem, é uma nuvem formada por gases tóxicos. A poluição rouba a minha saúde, meu oxigênio e aniquila as algas que cuidam da minha pureza. A busca pelo desconhecido me levou a trocar a selva nativa pela de concreto onde acabei envolto por entulhos não recicláveis. Sou uma vida vazia a perambular pelas margens da grande cidade. A longa caminhada, no entanto, levou-me ao encontro de outras importantes vertentes. Com origens semelhantes a minha, deixaram seu habitat na missão obrigatória de percorrer os declives naturais e, hoje, iguais a mim e com as mesmas dificuldades, nos unimos e formamos uma comunidade. Parte de nosso passado foi temporariamente esquecido. A união de vários córregos e vertentes tornou-se num único e caudaloso rio. Juntos, somos mais fortes, mas ainda frágeis diante das atrocidades humanas. Seus cidadãos vivem encabrestados por clãs que lhes traçam os destinos. Comem por suas mãos e rastejam mediante seus chamados. Os sonhos individuais já se foram. Não há esperanças com relação ao futuro, pois, para tal devaneio, é necessária a manutenção plena da biodiversidade. A cultura humana não concebe tamanha grandeza. Sua conduta é voltada para si e seus caprichos. Veja o nosso exemplo: despontamos nas serras e caminhamos pelos vales. Em nosso trajeto, levamos a vida em abundância a todos os seres ribeirinhos e o que lucramos?.. Maus tratos?... Abandono?...Num passado não muito remoto, nos fins de semana abrigávamos as canoadas, as competições esportivas. Hoje, vivemos como mendigos inundados pela decomposição de restos alimentares; cegos, pois não refletimos a lua nem as estrelas, ou a aurora. Semimortos, a vida aquática que caminha conosco se fez doente. Com a obstrução de nossa via de trajeto, a enchente nos expande, então mostramos a nossa ira invadindo casebres, as mansões, as marginais. Travamos uma luta inglória. A cada prejuízo que causamos, é caso de ascensão política, motivo para a busca de capitais no exterior que irá patrocinar grupos que se dizem amantes da Natureza, mas que pouco fazem pela fonte natural da vida.
Consenso.
Sobrevivemos ao caos urbano. Atravessamos a pior parte de nossa jornada. Procuramos nos refazer ao estrago que sofremos, contudo, não haverá tempo suficiente para a nossa total recuperação. Jamais voltaremos à pureza da infância, à curiosidade da puberdade, cobertos que estamos das marcas que o destino nos deixou. Restam muitos quilômetros para concluirmos a viagem, mas estamos cansados. A sociedade envelheceu, nosso vagar é lento. Resta em nós a lembrança do canto da cigarra que, no verão, se “arrebentava” de tanto cantar. Da criança que engatinhava nas vertentes ou que saltitava nas cachoeiras. Não temos mais o corpo esbelto da adolescência, nem o tipo viril que alargava as barrancas. Não há grandes florestas nativas, o verde que temos são lavouras temporárias em nossas margens. O desconhecido, que era sonho, virou uma realidade sem alarde. Não fizemos os nossos destinos e sim seguimos pelas trilhas tortuosas que ele nos traçou e com passagem só de ida.  Próximo à reta final, a construção dos açudes deixou nosso corpo deformado; estamos vivos, mas fora de 
Barcaça- Google
forma. Perdemos as linhas esguias da juventude e a força desbravadora dos adolescentes. Não se ouve mais o som monótono da garoa se espalhando pelos cafezais e nem se vê as danças harmoniosas dos tangarás nas galhadas. A paisagem que inspirava poema lírico deu lugar às lanchas e ao esqui aquático. Resta a lembrança dos grandes amigos “afluentes”. O rio das Monções, a estrada que transportava o Bandeirante, hoje embala os casais enamorados em suas descobertas. Somos a via que sustenta as barcaças, o leito que abriga os peixes, a fonte que irriga as plantações. Prevalecem os alarmantes pescadores; o fio dental e o “top less” afastaram a garota sonhadora, charmosa e humilde. Mas nem tudo é tristeza. A caminhada elevou meu nome, o mundo conhece minha história e as gerações futuras hão de conhecer-me. Entre tantos, esbanjo notoriedade.
É o consolo daquele que nasceu, cresceu e se integrou numa sociedade, assim como você; porém, meu infinito é o mar...Sou o Tietê!

Imagens- Google.
C/cirodovalle-95-00-06-14

(Tietê é parte integrante de Sátiras - FBN 1995.)

Terra das Águas (Salesópolis.)



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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A um passo atrás.

Durante as últimas décadas a ciência evoluiu de forma considerável. Tudo o que parecia impossível vem encontrando explicação e as soluções - totais ou parciais - acontecem.

Do clipe ou da caneta tinteiro - sonho de consumo em seus dias-, ninguém se lembra; há menos tempo, o fac-símile, que foi o “boom” dos anos noventa é sufocado pelo e-mail assim como as correspondências via-papel que perduravam desde os pombos-correios.
Muitos avanços vieram e, segundo os descobridores, elas são para beneficiar o homem. Mas houve outras melhorias que não têm a mesma difusão entre a humanidade. O motor a explosão e a energia elétrica muitos ainda desconhecem. Outro feito catastrófico é o progresso da ciência militar. Adaptada a tanques e a aviões, nos anos sombrios ganhou versão teleguiada e o conhecimento humano desenvolveu verdadeiros flagelos. O capitalismo desenfreado, as disputas por poder, a quebra de tabus abriram novos horizontes científicos. Por outro lado, os feitos cobram da humanidade adaptações racionais que elas não conseguem assimilar.
A ciência avança entre as tribos indígenas, mas não é corriqueira nas favelas e guetos. Também é questionável o tempo em que ela gasta para dar suporte. Da máquina de escrever ao teclado foi uma eternidade; das experiências dos irmãos Lumière a fita VHS, ou do gramofone ao CD, foi de quase um século. A Aids se alojou a mais de trinta anos diante de sua cura. Outros anos foram necessários para erradicação da febre amarela, da paralisia infantil e, porque não dizer do câncer com sua diversidade que ainda é uma moléstia desconhecida. Contudo ainda persiste a dengue.
Hoje, quando se levanta, basta olhar os e-mails ou as notícias que os portais resumem para se ter uma ideia do que acontece no mundo. Reuniões em outras cidades? Com um simples toque as salas se juntam e em videoconferência tudo se resume. Se estiver em trânsito, têm-se o telefone celular-sonho das décadas passadas, que a realidade o tornou essencial nas nossas vidas.
No entanto, amparados por tantos avanços, surgem pessoas estressadas, vítimas de insônia, atrasadas, carecendo cada vez mais de carros mais velozes, apetrechos tecnológicos (Palmtop, notebooks, pen drives, webcam, internet) de última geração para suportar a corrida diária, numa luta desesperada como se o dia tivesse 16 horas apenas.
Com o pretexto de que todo o avanço tecnológico está à disposição do homem, milhões são gastos diariamente em tecnologia que apenas corrige e não antecipa os fatos. As esperadas conquistas chegam quase sempre atrás dos sinais dos tempos, esse intransigente coordenador que manipula as pessoas como peças num tabuleiro causando-lhes quedas, perdas e conquistas inesperadas. Nesse embate muito se afirma, mas o certo é que nenhuma técnica, credo ou ciência convence de que a culta raça humana é capaz de gerir-se a si própria, e as conquistas, na verdade, são arranjos para corrigirem distúrbios que a sabedoria é incapaz de antever.

         Ciro do Valle 04/08/2010).
                                                      Comentário.
         05/08/2010 08:12 - Od L Aremse M Peterson     recantodasletras.com.br

É isso! Há um passo atrás, isso tudo ocorreu, mas a um passo À frente, tudo pode passar num piscar de olhos! Avizinhamo-nos de um fim trágico e apocalíptico, graças ao 'non sense' do homem moderno. Apesar de racionais, sem depreciar os animais, agem irracionalmente. Estes mostram mais racionalidade quando demonstram seu zelo por seu habitat e lutam em favor do grupo e, instintivamente, lutam pela sobrevivência e permanência no planeta. Como Cristão, creio que isto é o cumprimento das Escrituras e que o Senhor não tarda. Deus o abençoe! Parabéns por excelente texto. Aguardo sua leitura e comentários..