domingo, 26 de julho de 2020

A Longa Espera.


Sobre a cadeira de balanço pairava a figura terna do velho José. O seu “Zé” de alguns, o “tio Zé” de outros. O olhar cansado de tantos anos buscava no vazio, mas “ela” não estava. Nada além da brisa vespertina que dava movimento às samambaias em seus xaxins.
 Envolto em seus pensamentos e com os óculos sobre o nariz, momentaneamente desviou sua atenção e agora se esforçava para ver o que a revista juvenil de sua neta mostrava. Era algo sobre flacidez e fornecia alguns exercícios localizados para eliminar tal desconforto. O que mais lhe chamou a atenção foi o corpo nu da modelo. Deitada de bruços e ocultando dos flashes as partes “vitais”, a jovem era de escultura perfeita e totalmente bronzeada; fato esse que o fez recordar de um ocorrido num passado distante. Aos dezoito anos e com o casamento marcado, acabou por ser vítima dos amigos da época que lhe aprontaram uma surpresa. Meses antes do enlace, promoveram uma festa na cidade - num quarto de hotel para ser mais exato-; queriam saber de sua opinião sobre as condições de aluguel daquele cômodo. Embora estranhando o convite, aprovou as condições crendo que seria um bom negócio e isso foi motivo para uma alegre comemoração. Ficou intrigado pelo fato de serem pessoas simples, mas optaram por bebidas caras chegando, até mesmo, a um legítimo “blended” escocês. Não tardaram as consequências; os olhos turvavam, as pernas ficaram bambas. Era hora de parar. Outra nova surpresa: ninguém protestou e ordeiramente foram saindo, um - a – um, até que o último lhe pediu que apagasse a luz do banheiro. Com a mente confusa obedeceu e, num único toque, impôs o breu àquele cubículo anexado ao quarto. Voltou e se dirigiu à porta, mas ela havia sido fechada por fora. Ocorreu-lhe a forte sensação de que “ela” estaria ali. Perturbado, olhou em volta, mas antes que chamasse por alguém, o que viu o fez estremecer. Uma mulher, toda maliciosa se irrompeu pelo ambiente e o agarrou. A princípio, tentou desvencilhar-se. Fervilhava na mente o desabono do padre Azevedo; podia ver sua mãe, em prantos, fazendo penitência; sua noiva o desprezaria..., mas era tarde. Com apetite voraz aquela esfomeada o devorava literalmente. Na inútil tentativa de repeli-la, lembrou dos amigos que, com certeza, estariam por perto a observá-lo. Deu-se por vencido e, pela primeira vez, sentiu que seu espírito foi elevado pelos confins do espaço cósmico. Só mais tarde, quando recobrou a consciência, foi que notou que ela ressonava de bruços, tal e qual aquela modelo da revista, mas, com uma ressalva: não era o tipo ideal para aquele anuncio. Com os maus tratos das noites, as bebedeiras, as extravagâncias, fizeram com que seu corpo, apesar de jovem, ostentasse todos os defeitos que as mulheres detestam e os homens condenam: estrias, celulite, gorduras localizadas. Mas, afinal, que diabos estava ele pensando nestes disparates?... se autocensurando, chegando até a ruborizar as faces, fechou a revista, livrou-se dela e mudou de lugar.

Lá dentro, os netos fazem a tradicional arruaça; os meninos usam argolas nas orelhas; vivem coçando a virilhas, ouvem músicas barulhentas - dizem que é moda - mas, se ocorre um momento sequer de distração, os olhos buscam no horizonte e, em silêncio, indagam: “ela” estaria lá? Reina a inquietação de que tanto lhe ocorrera nas inúmeras noites, desde a infância.

Depois da fatídica experiência daquele quarto de hotel, casou-se e viveu intensamente aquela união. Em nenhum momento, porém, distanciou-se “dela”. Na chegada do primeiro filho, enquanto sua esposa agonizava nas contrações, percebia-se “sua” presença. Outros vieram, filhos e filhas, somaram-se doze; todos saudáveis e sapecas. Em todos os nascimentos, surgia como uma ansiedade, um arrepio; era a “sua” presença. Lá, nas grandes navegações, nos cultos pagãos, nas guerras mundiais “ela” estava. Bastava despontar alguma duvida, “algo” espreitava. Em todos os aglomerados, estádios de futebol, trens lotados; onde há vida, há a “expectativa” e isso já o acompanha há muitos anos.

 Num dia muito triste sua esposa deixou seu convívio. Complicações múltiplas fizeram-na expirar. Com a sua partida, muito se chorou, mas o tempo se encarregou de atenuar todo o desconforto e as mágoas foram estancadas. O acúmulo de anos o fez compreender que a partida de alguém é algo tão natural quanto a sua chegada. O que leva as pessoas se apegarem as outras, como se fossem suas, nada mais é do que a ação do egoísmo e da ignorância. Na vida, nada nos pertence! Tudo gira em torno de uma Força Maior que a todos coordena e os dota de talentos natos para que deles utilizem. Ninguém, portanto, é propriedade de ninguém. A terra é imensa e os homens necessitam de tão pouco para viverem. Há espaço para todos e os grãos e as hortaliças, se semeados em épocas apropriadas e cuidados com presteza, produzem em abundância. Bom para as pessoas é ser livre, ter companheirismo, calor humano, mas tudo isso é gratuito e se renova em seu interior. O que os faz perecer são as aglomerações e as disputas por lideranças. Nestas questões, invariavelmente “ela” está envolvida. Que o digam os movimentos militares, sociais e políticos, os protestos de ruas onde os jovens eram chamados a povoar os parques, as ruas, sempre obedecendo às doutrinas ministradas por lideres que almejavam e conseguiram os seus intentos. Hoje, são presidentes, governadores, figuras condecoradas e, a massa heterogênea que repetia em coro as palavras de ordem, continua lá, obrigada a pagar em dia seus tributos e a ver os chefes, com suas armações, sangrarem a força que move o mundo. Pediram apoio e retribuíram com medidas provisórias, decretos que freiam as ideias realmente sociais. Investiram no futuro, enfrentaram todos os obstáculos; mas, no afã de vitória, esqueceram de um mundo fantástico que ainda espera para ser desbravado. Oculto nos planaltos e serras, repousam cachoeiras cristalinas, ares puros e céu que na noite quase sempre é estrelado; fontes vitais que proporcionam ao ser humano o que ele mais necessita: qualidade de vida.

A posição em que se encontrava se fazia incômoda. Descruzando as pernas, vê que uma de suas netas se aproximava, lentamente, como que se esperasse uma ordem para entrar no mundo místico do avô. Ostentando o corpo já formado, reluz o piercing no umbigo devido à blusa curta e a calça de cós rebaixado e ostenta nos olhos o fogo do desejo. É esperta, uma garota normal para a sua idade. Lentamente se ajeita ao lado do velho e fala de suas aventuras, de suas esperanças para com o futuro, onde a grandeza e o exagero estão presentes. Todo jovem é assim. Almeja muito, mas a vida vai modelando e priorizando os fatos mais importantes. Os contratempos são necessários para que o espírito não se perca em coisas fúteis e possa amadurecer cultivando cerne em seu interior que o galvanizará nas quedas diárias. Confiante, ela ajeita os cabelos e, beijando carinhosamente o avô, o deixa com seus pensamentos.

Todas as lutas e desejos são obras oriundas das concentrações desordenadas que favorecem a ambição e, essa gana, acaba por roubar-lhes os momentos mais marcantes. Tudo é passageiro, mas as boas e más lembranças perduram. Com olhar distante e sentindo o cansaço de sete décadas de trabalhos, prazeres e dificuldades, ele mantém sua viagem no mundo das ponderações. Hoje, entretanto, “ela” que sempre o aguardava no dobrar da esquina, no ruído do sótão; agora, se faz cada vez mais presente. Está por trás dos conflitos do Oriente Médio. “É” a coragem obcecada dos ‘homens e mulheres bombas’ que aterrorizam Israel. Está oculta no ódio, no temor americano e foi uma das  causadora das lágrimas em Kandahar. É possível “senti-la” a cada instante. Já se manifesta em seus membros; é a companheira das longas noites; é o temor do cão-vigia que ladra, a parceira do quarto escuro ou dos sons emitidos pelos seres noturnos. Dos sonhos, é a realidade; dos devaneios, a sensatez; é o fim de todos os ideais. Só no apogeu dos anos foi possível ver quão ditosos foram os dias do amanhecer ao pôr do sol. Quão gratificante foi ver os filhos crescerem e se multiplicarem. O que dizer das memoráveis tardes de verão ao lado das grandes amizades?... A vida tem sentido e se faz maravilhosa quando é compreendida, mas nada é eterno! É necessário remover o tronco para que o broto frutifique. É fundamental substituir o velho para que o rebento floresça. O sol tem que ser por para que a nova aurora desperte. Assim, quando “ela”, a morte, em sua hora, impor os seus desígnios, que seja de forma natural e tranquila, como a brisa de verão ou como o revoar de gaivotas por sobre o banhado em direção ao poente. 

Depois da batalha, aos vencidos pela labuta diária, enquanto aguardam na urna, retomam o semblante de crianças saudáveis quando repousam;
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pois dos mortos, até os mais ferrenhos inimigos compadecem. Jazem com eles as ganâncias, as divergências, os atos aparentemente premeditados, as maldades incontroladas. Os contrastes ocorridos foram choques de opiniões, visto que o mundo, com suas inquietações, gerou neles o desejo ardente de unificá-lo. Além do mais, os humanos, mesmo diferenciados e incultos, têm em si a mesma origem. Uma vez tombados e adornados, retomam a essência divina. Mesmos os mais agitados, quando ali se encontram em paz, assumem a verdadeira identidade: não passam de anjos; seres que foram contrariados na busca de seus verdadeiros ideais.

- ‘Vô’!...Vem jantar! A neta lhe chama. É hora de despertar e retornar de sua viagem. Reunindo suas forças e arrastando a sandália, o ancião segue ao encontro de seu maior tesouro: a família.