In natura.
Há quem diga que sou uma dádiva, um encanto, um
mistério. De fato, sou fruto da relação entre o sol e o mar; gerei-me em vapor,
elevei-me ao ar, a brisa me transportou e lá, nas encostas da serra, no ventre
da terra, o sopro da vida se apossou de mim. Sou menino franzino a engatinhar
por entre as folhas secas, em alegre folguedo, deslizo pela grota. Na inocência
da infância sou contagiado pelo clima silvestre que rodeia o meu caminhar. No
vale encantado, onde a Natureza impera, vou seguindo a trilha. Um lugar
paradisíaco em que as abelhas disputam as flores com os colibris apressados enquanto o bem-te-vi observa ao longe. O berço protegido pelos biris,
chapéus-de-couro e os cerrados não ocultam o ipê que guarda suas pétalas para
expô-las na primavera. Tatus-mirins saem de suas tocas e se alimentam no
sauveiro. Passo despercebido pelas ramadas onde o guaxinim vigia a jararaca que
se arrasta sorrateira no encalço de pequenas rãs e ninhos de camundongos. Há
jogos de sedução e até lutas violentas em toda a fauna. São regras do jogo da
vida, das quais, nenhum ser vivo é excluído. Assim, a borboleta cobre
de inveja às mariposas que preferem fazer suas revoadas à noite. Da mesma
forma, os morcegos repousam de dia enquanto as andorinhas e os sabiás varrem o
planalto serrano. Ainda oculto pelas matas, recebo outras vertentes e, juntos,
ganhamos força para romper o pântano do qual o “João” recolhe o barro para
fazer sua casa. Já na puberdade e cheio de vida, posso ver o sol que irrompe
nas capituvas e erva-de-bicho que protegem meu leito. Sombreado pela ingazeira,
o tucum protege seus frutos com espinhos pontiagudos ao passo que um bando de
tucanos barulhentos, desperta a coruja sonolenta na fenda da velha, imensa e
calada paineira, vizinha ao eucaliptal.
Já se foram alguns quilômetros entre as vegetações.
Chegou o momento de sair da “casca” e enfrentar os campos abertos.
Liberdade.
Ciente de que toda cria é gerada para o mundo, o olhar
apreensivo da mãe Natureza vê-me como um alegre menino a saltitar pela
cachoeira adentrando ao vale côncavo onde o horizonte se mostra mais próximo.
Ouve-se, ao longe, o cantar da seriema, entrecortado pelo pica-pau com seu
potente “martelo” a perfurar as imbaúbas na incansável busca por insetos. Nas
manhãs ensolaradas, no final do outono e início do inverno, quando os ares são
mais claros e a vegetação mais verde, nota-se grande revoada de garças, socós e martins - pescadores enquanto que, no banhado, frangos d’água emitem seus
cantos estridentes sobrepondo-se ao da jaçanã que corre por entre os arbustos. Não
muito longe, na sombra das árvores, o gado bovino repousa e faz seu “repasse”.
Entre tanta singeleza, eis que surge a caboclinha faceira. Traz a mala de
roupas e sabão de cinza. Antes de iniciar o trabalho, aproveita a pureza do
manancial que lhe reflete a imagem; lentamente ajeita as tranças de cabelos
longos, esboça um sorriso tímido em que os lábios volumosos embelezam ainda
mais a tez morena,já o brilho dos olhos ligeiros oculta sonhos que só ela
conhece.
O declive acentuado faz o meu deslizar mais agressivo
e adentro com ímpeto a barroca aonde encontro novos amigos que se tornam meus
“afluentes”. Formamos, ali, uma unidade num só objetivo: desbravar o
desconhecido. Sou guerreiro a alargar as barrancas que reprimem o meu leito.
Quando a noite é silenciosa, ouço os corais extasiados de grilos “desafinados”
e a sinfonia de sapos. Vejo a via-láctea, as estrelas cadentes e a lua que,
como as emoções, se renova. Na época das águas, as enchentes fazem-me expandir pelas
margens formando lagoas e remansos, atraindo curiosos e mentirosos pescadores,
capazes de transformar um “enrosco” em imponente caso de pescaria. Nesse
estágio, atraio também os pacíficos agricultores que buscam as planícies para
implantarem cultivos. Em resposta, as hortaliças se tornam abundantes para o
regozijo dos olhos puxados que as administram. Ainda a integração
Homem-Natureza caminha lado a lado.
A pão e
água.
Começo a adentrar ao primeiro centro urbano e a visão
que tenho não me agrada. O menino que se ocultava no berço de folhas
mortas, cresceu. Como adulto, sou levado a novas aventuras e passo a enfrentar
novos obstáculos. A concentração urbana
é desordenada. A busca por melhores dias, mais conforto, faz com que as pessoas
prefiram as cidades, o que contribui para a minha ruína. O meu deslizar ficou
mais lento e, se antes a população era rarefeita, agora se transformou numa
grande comunidade. Com as aglomerações, vêm às indústrias e, com elas, o limbo,
os ácidos, as resinas e os dejetos concentrados dos esgotos. A pobreza urbana é
incomparável. Se os caboclos da zona rural vivem espalhados pelos campos,
providos de imensa simplicidade, creditam ao infinito seus sonhos e esperam com
dignidade a sua realização, o oposto ocorre com os metropolitanos. Bombardeados
de estímulos pelo consumismo, pelos excessos e pela promiscuidade, tornam-se
marginalizados, povoam os lixões e se amontoam em barracos destruindo as matas
nativas que me protegiam. Das desigualdades sociais originaram as favelas que
se estendem por todos os lados. Atordoado pelo barulho infernal vindo da
metrópole carrego os gemidos de um povo que se destrói dia-a-dia. Ouço os
soluços de famílias miseráveis, todas as noites, vindo das palafitas ao meu
redor. Se antes a serração pousava delicadamente sobre as matas, hoje, o que se
tem, é uma nuvem formada por gases tóxicos. A poluição rouba a minha saúde, meu
oxigênio e aniquila as algas que cuidam da minha pureza. A busca pelo
desconhecido me levou a trocar a selva nativa pela de concreto onde acabei
envolto por entulhos não recicláveis. Sou uma vida vazia a perambular pelas
margens da grande cidade. A longa caminhada, no entanto, levou-me ao encontro
de outras importantes vertentes. Com origens semelhantes a minha, deixaram seu habitat
na missão obrigatória de percorrer os declives naturais e, hoje, iguais a mim e
com as mesmas dificuldades, nos unimos e formamos uma comunidade. Parte de
nosso passado foi temporariamente esquecido. A união de vários córregos e
vertentes tornou-se num único e caudaloso rio. Juntos, somos mais fortes, mas
ainda frágeis diante das atrocidades humanas. Seus cidadãos vivem encabrestados
por clãs que lhes traçam os destinos. Comem por suas mãos e rastejam mediante
seus chamados. Os sonhos individuais já se foram. Não há esperanças com relação
ao futuro, pois, para tal devaneio, é necessária a manutenção plena da
biodiversidade. A cultura humana não concebe tamanha grandeza. Sua conduta é
voltada para si e seus caprichos. Veja o nosso exemplo: despontamos nas serras
e caminhamos pelos vales. Em nosso trajeto, levamos a vida em abundância a
todos os seres ribeirinhos e o que lucramos?.. Maus tratos?... Abandono?...Num passado não
muito remoto, nos fins de semana abrigávamos as canoadas, as competições esportivas.
Hoje, vivemos como mendigos inundados pela decomposição de restos alimentares;
cegos, pois não refletimos a lua nem as estrelas, ou a aurora. Semimortos, a
vida aquática que caminha conosco se fez doente. Com a obstrução de nossa via
de trajeto, a enchente nos expande, então mostramos a nossa ira invadindo
casebres, as mansões, as marginais. Travamos uma luta inglória. A cada prejuízo
que causamos, é caso de ascensão política, motivo para a busca de capitais no
exterior que irá patrocinar grupos que se dizem amantes da Natureza, mas que pouco
fazem pela fonte natural da vida.
Consenso.
Sobrevivemos ao caos urbano. Atravessamos a pior parte
de nossa jornada. Procuramos nos refazer ao estrago que sofremos, contudo, não
haverá tempo suficiente para a nossa total recuperação. Jamais voltaremos à
pureza da infância, à curiosidade da puberdade, cobertos que estamos das marcas
que o destino nos deixou. Restam muitos quilômetros para concluirmos a viagem,
mas estamos cansados. A sociedade envelheceu, nosso vagar é lento. Resta em nós
a lembrança do canto da cigarra que, no verão, se “arrebentava” de tanto
cantar. Da criança que engatinhava nas vertentes ou que saltitava nas
cachoeiras. Não temos mais o corpo esbelto da adolescência, nem o tipo viril
que alargava as barrancas. Não há grandes florestas nativas, o verde que temos
são lavouras temporárias em nossas margens. O desconhecido, que era sonho,
virou uma realidade sem alarde. Não fizemos os nossos destinos e sim seguimos
pelas trilhas tortuosas que ele nos traçou e com passagem só de ida. Próximo à reta final, a construção dos açudes
deixou nosso corpo deformado; estamos vivos, mas fora de forma. Perdemos as
linhas esguias da juventude e a força desbravadora dos adolescentes. Não se
ouve mais o som monótono da garoa se espalhando pelos cafezais e nem se vê as
danças harmoniosas dos tangarás nas galhadas. A paisagem que inspirava poema
lírico deu lugar às lanchas e ao esqui aquático. Resta a lembrança dos grandes
amigos “afluentes”. O rio das Monções, a estrada que transportava o
Bandeirante, hoje embala os casais enamorados em suas descobertas. Somos a via
que sustenta as barcaças, o leito que abriga os peixes, a fonte que irriga as
plantações. Prevalecem os alarmantes pescadores; o fio dental e o “top less”
afastaram a garota sonhadora, charmosa e humilde. Mas nem tudo é tristeza. A
caminhada elevou meu nome, o mundo conhece minha história e as gerações futuras
hão de conhecer-me. Entre tantos, esbanjo notoriedade.
É o consolo daquele que nasceu, cresceu e se integrou numa sociedade, assim como você; porém, meu infinito é o mar...Sou o Tietê!