quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Olhos felinos.

Era o fim da hora de “rush” naquela casa. Depois de tanta agitação a paz retorna àquela família. A porta do quarto se encontra entreaberta e, alheia a tudo, ali deitada na cama, mostrava sinais de despertar daquele sono improvisado da tarde. Era uma madorna, um estado de vigília de onde se podia ouvir e sentir tudo o que acontecia ao redor.A fronha macia e colorida e os pôsteres na parede formavam uma decoração harmoniosa. Com um esforço maior pode sentir que a noite já ia alta e não chovia. A cortina permanecia estática - mesmo com a janela aberta - prova que a calmaria reinava do lado de fora. Pelo corredor dava para ouvir o ruído vindo da sala de estar. A televisão, como sempre, trazia a mesma programação mórbida. Movendo lentamente as pálpebras foi descortinando a penumbra do quarto mal iluminado pelas réstias vindas do corredor. Os olhos azuis se esforçavam para reconhecer os móveis, só com a total dilatação das pupilas foi possível fazer o reconhecimento do cômodo. O coração foi se acelerando e com grande esforço, num longo espreguiçar fez distender toda a coluna vertebral e os membros superiores e inferiores. Bocejando longamente se levanta. Ainda sem muita disposição caminha lentamente pelo corredor indo até a cozinha onde, sem muita cerimônia, belisca algo aqui e ali. Os pratos e talheres estão amontoados na pia. Há restos de saladas na travessa, ossos sobre a toalha de plástico na mesa, uma desordem; pudera, a família estava reunida em seu principal ponto de comunhão diário: o seriado das oito. Deixa a cozinha. Não vai jantar. Arrotos expõem o resultado da mistura de petiscos que provou no decorrer da tarde. Entra na sala onde a família estava reunida em silêncio diante da tevê. O drama caminhava para o final. Com a respiração contida, olhares indagantes e recíprocos, digerem as novidades no vídeo expostas. Ela, por não gostar de drama ensaiado, passa desapercebida e, passeando por sobre o tapete árabe, ganha o terraço. A brisa noturna traz sinais de poluição, odores estranhos que, no inverno, intensificado, irritam os olhos, os pulmões e toda a flora confinada nos vasos estrategicamente ali distribuídos.
Acostumada com a rotina estafante, solta a imaginação, mas tudo é incerto. A noite reserva mistérios. Tudo pode acontecer ou nada de novo poderá vir à tona. É uma aventura em território conhecido, mas as trevas são próprias para seus habitantes. Nos seres diurnos, a escuridão acentua a sensibilidade, enaltece a libido e pode provocar sentimentos confusos; portanto, embora seja uma conhecedora dessa área, não ignora os riscos sabendo que poderá ser uma busca surpresa.
Aproveitando-se da paz ali encontrada, agarra firme nos balaústres coloridos alongando novamente toda a coluna vertebral. Em seguida se contorce de forma suave movendo os músculos peitorais, lombares e das pernas. Respira fundo e volta pra sala.
Plantada em frente à tevê, sua família, agora, debate de forma ardorosa as cenas exibidas enquanto os comerciais divertem seduzindo os telespectadores. Outra vez não é notada. É hora de se preparar e um demorado banho é essencial.
Alheia às dificuldades, começa pelas narinas, depois os olhos; cuida das orelhas e da nuca. O cartão de visita está pronto. Boa expressão é fundamental e os olhos e as sobrancelhas, bem cuidadas, são capazes de transmitirem emoções, Além, é claro, de serem essenciais à percepção e proteção.
Retoma a viagem. Agora, pelo pescoço indo até a omoplata e descendo até as unhas e retornando por outro lado. Em seguida, reinicia pelo lombo e faz a longa descida pelas vértebras passando pelas nádegas e prolongando pelo lado esterno das coxas complementando até os pés. Vira de lado e subindo por outra perna indo alcançar novamente a nuca. Agora, de costa, fita o teto e a tela branca ganha cores além dos azuis dos olhos e vai projetando nela os seus desejos. Por ser jovem, muita coisa ainda a inquieta. Desconhece a fome, a solidão e, por gozar de extremo conforto, ignora o temor pelas adversidades. Desconhece os terremotos, os temporais e os invernos rigorosos. Sempre amparada, seu íntimo a impele a buscar novas descobertas, a desvendar certos mistérios que a incomodam. O instinto a chama, a comodidade a cansa. Há coisas mais interessantes para se conhecer além do conforto reinante entre as quatro paredes. Os estímulos naturais de reprodução já manifestam trazendo brilho no olhar, odores excitantes e as glândulas da fertilidade trabalham intensamente inundando seu corpo com os hormônios próprios do sexo. É visível sua agressividade contida intercalada com extremos atos de carinhos; mas, antes de tudo, é imperioso aprimorar as defesas, treinar os ataques, conhecer os desejos e só então provar do que é novo para descobrir as regras do velho mundo, mas em sua ótica!
Precisa saber das dificuldades e das novidades que o dia-a-dia prepara. Quem não ousa na adolescência acaba tornando-se um adulto receoso. A dor, o medo, a morte, lá fora, na noite a espreita, mas é a vivência diária desses desafios que trarão os aprendizados, os quais vão se fixando lentamente e, nessa escola, o aprovado tem direito a uma vida farta de prazer e alegria. Respira fundo; é isso que ela quer conhecer e retorna o banho. Com toques suaves - mas decidido - acaricia o queixo sensual descendo pela garganta indo até o antebraço; volta pelo colo, mas é interrompida por ruídos nos apartamentos, pessoa conversando em tom elevado, alegre; foi só um momento. Sentindo-se novamente segura, toca delicadamente sobre os mamilos, ainda jovem, descaindo pela barriga, a qual mostra sinais de gorduras localizadas resultante da vida sedentária que leva. Isso, no entanto, não a incomoda e, elevando as pernas ao alto, as vem acariciando, lentamente, uma e outra, apreciando da maciez dos lados internos das coxas chegando até ao púbis onde cuida generosamente da fina plumagem ali estabelecida. É hora de uma nova retocada por todo o corpo, costa, orelhas e permanece relaxada. Pouco depois já caminha pelo corredor em direção ao quarto.
Que horas seriam?...Não importa. Quase oculta pela claridade do néon, a lua vai alta e próxima da cheia, o que justifica o furor interno na inquietante explosão da libido que pulsa por todo o corpo. Na sala, houve dispersão geral. Há ruídos de pratos sendo enxaguados na cozinha e conversa descontraída nos quartos. Chegando ao terraço, com as orelhas em riste, fixa na cidade que aos poucos vai se acomodando. Contempla longamente o horizonte e, voltando-se para o lado, vê a escada de emergência que é próxima da sacada. Basta ultrapassar o parapeito e seguir equilibrando pelos detalhes arquitetônicos que em breve ganhará as ruas e, com olhar felino e instinto de aventureira, vai invadir a noite; porque enquanto a cidade dorme, é a hora dos gatos irem à caça.