Vinda do
nada uma pomba aparece, voa entre as árvores e pousa na praça. Com seu andar
entrecortado, sua atenção é para os restos deixados na grama. O lugar é
conhecido e nada a amedronta: nem os cães, os gatos ou as pessoas que ali
frequentam. Ela é alvo de atenções diárias.
Como
aquela pomba, seus admiradores também já voaram pelos quatros cantos do mundo
em sonhos, conheceram a solidão, as guerras e as transformações da humanidade
que, como o mar, é inquieta num vai e vem constante. Fizeram famílias, lançaram
suas sementes ao vento. Algumas vingaram, outras se perderam entre as “ervas”
daninhas. Sofreram perseguições e seus credos os decepcionaram. Tudo ruiu com a
revolução dos hábitos. Tantas verdades eles defenderam e viram cair por terra
os seus ideais. A modernidade avançou de forma desenfreada. A sabedoria era como
um conta-gotas que, aos poucos, ia pingando sobre as mentes ilustres. De uma
hora pra outra, transformou-se num jato que inunda os povos.
Leais
defensores de Getúlio ainda guardam aquela notinha de dez cruzeiros,
desvalorizada, onde estampa a imagem do imponente gaúcho, além do quadro
exposto na sala de estar.
Os
militares se renderam ao clamor da liberdade, mas os libertos não entenderam o
significado dessa conquista. Com isso, os idosos estão perdendo na guerra da
competição.
Omitem-se quando o assunto é polêmico; ignoram se o tema é sobre laqueadura ou
vasectomia. A cesariana ainda os convenceu porque a juventude é cheia de manias
e comodismo. Rejeitaram os anticoncepcionais e os preservativos: tinha que ser
ao natural e de luz apagada; se a viagem era íntima, o escuro favorecia o tato
trazendo um clima de suavidade e segredo. Já não há tantos partos caseiros como
outrora; “a mãe do corpo” tem nome próprio; o “mal dos sete dias” está
controlado e as mulheres estão menos “criadeiras”...
Dos feitos
da infância pouco se lembram. O futuro é, e sempre será, uma incógnita. Tantos
anos se foram. Quanta luta?... Com o declínio da libido, os ânimos se acalmaram
porque há menos agressividades e as lembranças dos maus momentos foram
superadas. O tempo, agora, é de confraternização, de rever as coisas simples: o
café com leite trazido direto do curral; ovos vindos do ninho, a broa assada no
fogão a lenha, a linguiça e o toucinho pendurados no “fumeiro”, apanhar
jabuticaba uma a uma, ouvir Noel Rosa num disco de 78 RPM ou Nelson Gonçalves e
seus momentos mais inspirados.
Há
momentos de tristezas quando se lembram das pessoas que foram dizimadas pelas
moléstias, da fome e da miséria que assolam o mundo. Mas o conselho dos anos
tem mostrado que tudo o que é bom ou ruim acaba passando. Assim, a viroses,
como toda a moléstia, um dia vai passar. Um dos poucos fatos que talvez não vá
tão cedo são as lembranças dos momentos em que
deixaram de seguir as ordens do coração.
Quem já provou de
tantos vinhos e se embriagou de fel, merece um tempo. É hora de rever os
planos, de ficar a toa; de contemplar sua obra, relembrar dos velhos amigos e
suas fantasias. O mesmo sol de tantos anos ainda brilha no firmamento. A lua,
fiel confidente de seus devaneios, enfeita a noite estrelada. Não importa se
com passos lentos, semblantes cansados... A chama da vida mantém-se acesa;
então, alegrem-se! Envelhecer não é um desejo ou um castigo, mas uma condição
imposta pela Natureza a todos os seres vivos que habitam sobre a terra. Revejam
suas roupas alegres, seus ternos de linho e abusem das alegrias. A sua
contribuição física para o mundo, nesta vida, está concluída. E, como o oceano
não se julga pelas marés ou pelas ressacas, assim como a árvores são
consideradas pelos frutos que produzem; também os homens são alvo de júri, não
pelo nascer ou pelo limiar dos anos, mas, pelo bem ou mal que protagonizaram
nessa vida. Aos demais cidadãos, cabe a responsabilidade de providenciar meios
que deem a sábia idade, o direito de envelhecer em paz. Alheia
às conclusões dos transeuntes, aquela pomba andarilha permanece na praça.
Entretanto, todos sabem que a qualquer momento ela alçará voo, fará seu verão e
partirá... para sempre!
A Joaquim T. Nascimento, meu pai e meu amigo que faria, hoje, 90
anos. *1924 + 2005..